A política no velório de Eduardo Campos

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Publicado Segunda, 25 de Agosto de 2014 às 13:30, por: CdB
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Reflexões do colunista após a missa velório de Eduardo Campos
 No último domingo, enquanto assistia à missa no velório de Eduardo Campos, anotei em uma folha dobrada: Lula quebrou as vaias, as lanças e hostilidade que se levantaram contra Dilma. Mal terminaram as vaias, Lula pegou Miguelzinho, o bebê órfão, dos braços de Renata. E fala com ela, a ela. Atrás dele, Serra faz uma cara de quem mastiga o insuportável. A cara de Serra, atrás de Lula, me lembrou uma lição da cartilha do ABC na infância: “Paulinho mastigou pimenta...”. Amigos depois me informaram que as emissoras de televisão perderam um drible magistral do ex-presidente em hora difícil: mostraram somente a calvície brilhante e cara que não esconde a raiva de Serra. Mas a cara no velório foi outra. Lula roubou a cena das mãos da selvageria, da claque formada que investiu contra a companheira no velório. Acima do pós-doutorado em política e relações humanas, esse homem do interior de Pernambuco tem a dignidade dos que se defendem com o olhar no horizonte, até mesmo quando insultado. Sem pompa, é autoridade pelo que de brasileiro deserdado ele possui. Ao me dirigir ao Recife Antigo, ao subir a ponte Buarque de Macedo, sem querer lembrei dos versos de Augusto dos Anjos, no poema As Cismas do Destino, cuja primeira estrofe recupero aqui: “Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no Destino, e tinha medo!” Medo sentimos pela onda de conservadorismo que se levanta. Quando o arcebispo de Olinda e Recife rezou na missa em frente ao palácio do governo a frase: “Aceita, Senhor, o nossa sacrifício”, uma jovem devota a meu lado, enquanto comia um potinho de doce de banana, repetiu com ele: “Senhor, aceita o nosso sacrifício”. E comia. Faz mal à gente o mundanismo reles, naquele instante e lugar. O que meu íntimo censurava, noto depois, é o comportamento vulgar da ausência absoluta de respeito aos mortos. Mas a jovem que comia docinho repetia a visão do palco da missa, quero dizer, do púlpito, quero dizer, nas autoridades e alguns íntimos do falecido adiante. Ela traduzia o grande mundo à altura das suas posses A liturgia da morte estava quebrada, dentro e fora do cercado em frente ao Palácio do Campo das Princesas. Na missa, o arcebispo Dom FernandoSaburido falou em ressurreição. “Como disse o apóstolo Paulo, na segunda leitura: como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão.... E o mais bonito, meus irmãos e irmãs, é que todos os que creem em Jesus reviverão, não somente depois da morte, mas desde o instante em que acreditamos na sua Palavra”. Na Praça da República, no Recife, o que se interpretava de tais palavras era mais carnal. De fato, no contexto armado do show cujo mote era uma tragédia, entre os telões com os atores políticos e pessoas com bandeiras eleitorais do PSB e de Marna Silva, a ressurreição falou mais perto à terra. E aqui, nem vamos lembrar, porque herético, demolidor, o sentido que deu à palavra o romance Ressureição, de Tolstói. Porque o significado era mais simples e baixo, nas condições do show eleitoral criado em torno da missa: a ressurreição pertencia a Marina Silva. Por isso, na ponte Buarque de Macedo, vou mastigando a cena que inverteu o sentido das vaias com o gesto de agasalhar em seus braços o bebê Miguel. Menos para as imagens na televisão, onde apareceu a brilhante calvície de Serra. E penso e me preocupa mais com a pregação das qualidade de Eduardo Campos em que avulta o amor à família cristã. Para mim, para mais de 90% dos brasileiros que não nos formamos em famílias sólidas, de avós, pai, mãe e filhinhos harmonizados, isso é o mesmo que um escárnio. Suavizado, é claro, pela doce luz do evangelho. Por que em lugar de uma pregação de valores humanos que abriguem a realidade vivida por todos os brasileiros se faz uma construção piegas, e falsa, por extensão? Será mesmo assim tão importante ser família no sentido mais burguês da palavra, não ter falhas, somente filhos, amar o lar doce lar, último reduto da tempestade do mundo? Então somos obrigados a ver Jarbas Vasconcelos elogiar o respeito à família em Eduardo, ao mesmo tempo que nem devemos lembrar a última “namorada” de Jarbas Vasconcelos ser capa da Playboy. Faz parte da hipocrisia eleitoral, que em vez da homenagem que o vício paga à virtude, é substância mais grosseira: a destruição da lembrança da orgia da última noite. Pensando melhor, o que vimos nesse último domingo foi tudo, menos um velório. Chamem-no de evento, espetáculo, oportunismo, abuso da memória dos mortos, insensibilidade à tragédia, surfismo eleitoral. “Nós temos família e sabemos o quanto é importante uma família feliz. Ontem, por coincidência, foi o encerramento da Semana Nacional da Família, cujo tema para reflexão neste ano de 2014 foi A espiritualidade cristã na família: um casamento que dá certo. Ou seja, tudo a ver com a família que Eduardo e Renata procuraram constituir e que viveram na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e que agora continua tão firme e estável como antes, na saudade e no amor que não morre”, assim falou o arcebispo Dom Saburido. . Prefiro os versos de Augusto dos Anjos, ao subir a ponte Buarque de Macedo: “Mas a Terra negava-me o equilíbrio... Na Natureza, uma mulher de luto Cantava, espiando as árvores sem fruto, A canção prostituta do ludíbrio!” Depois do último domingo, sabemos que a mulher de luto é Marina Silva. Há um tom profético em toda poesia. Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião. Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.
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