Bolsonarismo renovado e a opção Lula polarizam futuras eleições

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Publicado Quarta, 19 de Agosto de 2020 às 11:42, por: CdB

O governo adotou o programa econômico das elites neoliberais, embora fora do horizonte cultural tradicional dos seus setores supostamente democráticos. Por isso, nunca foi de fato ameaçado, mesmo com um descontentamento crescente no andar de cima.

Por Lincoln Secco e Julian Rodrigues - de São Paulo
O fascismo, historicamente, nunca se caracterizou por um projeto político-ideológico fechado, definitivo, consistente. Ele é acima de tudo um oportunismo absoluto e seu objetivo é a monopolização do poder político sem contrariar os interesses fundamentais da classe dominante. O bolsonarismo é uma modalidade de neofascismo. Construiu uma aliança com o “mercado”, representado por Paulo Guedes e amalgamou um conjunto de setores sociais.
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Lula apresenta-se como alternativa do campo de esquerda para enfrentar o que vem por aí
O governo adotou o programa econômico das elites neoliberais, embora fora do horizonte cultural tradicional dos seus setores supostamente democráticos. Por isso, nunca foi de fato ameaçado, mesmo com um descontentamento crescente no andar de cima (liberdades democráticas, direitos civis, pauta ambiental, enfrentamento da pandemia etc). A democracia racionada (Carlos Marighela) que caracterizou a “nova república”, chegou ao limite de suas potencialidades em 2016, quando a burguesia optou pelo golpe que depôs Dilma Rousseff. O ataque às formas democráticas aprofundou-se em 2018, quando o principal candidato de esquerda foi preso e interditado. A eleição de Bolsonaro é fenômeno indissociável do bloqueio eleitoral operado contra Lula.

A Frente Ampla

Lula simboliza o polo contrário de Bolsonaro e, com ele, compartilha um terreno comum de disputa do apoio popular. É por isso que setores de centro “denunciam” a polarização e procuram um líder “para chamar de seu”. Ironicamente culpam o PT por ser o principal obstáculo à união nacional. Mas se cabe superar o antagonismo, é inútil apelar a um dos polos. O fortalecimento de quem se julga estar no meio depende da superação dos dois lados antagônicos e não de um só deles. Anular a principal força da esquerda numa geleia geral resolve a polarização com a vitória definitiva da extrema direita. Parece que o problema está muito mais no fato de que nossa polarização é assimétrica, pois a esquerda não é realmente radical e anti-sistêmica. É por essa razão que “frentes amplas” não prosperam. Rodrigo Maia é transparente: não apoia o impedimento de Bolsonaro, embora discorde de sua agenda “de valores” (eufemismo para falar de liberdades democráticas e da defesa do meio ambiente). As ilusões da frente ampla se tornaram mais decepcionantes diante das novas pesquisas de opinião que mostram que, além de não perder seu núcleo duro de apoio, o bolsonarismo avança em outros segmentos da população. Por mais que tenhamos que desconfiar de institutos que vendem seus resultados para seus contratantes e das condições de enquetes eleitorais em meio à quarentena, é evidente que o governo sobreviveu a todas as falsas profecias de sua queda iminente. Em um momento em que a tragédia do número de mortos pela covid-19 avança, soa espantosa a ascensão da popularidade do presidente. Ocorre que o bolsonarismo é um fenômeno social complexo, que não se resume à vitória do ex-capitão em 2018. Ele realmente colocou no centro da disputa a cultura, os valores civilizatórios, as concepções de mundo e de organização da sociedade – ainda que de forma monstruosa. Sua adesão a este ou àquele programa econômico não é uma questão de princípio e está subordinada a um propósito fascista de desmontagem do que ele acredita serem os aparelhos de Estado infiltrados pelo “marxismo cultural”.

As ilusões

A previsão de uma derrota de Bolsonaro, seja por impedimento ou nas próximas eleições, fundamenta-se nos efeitos da depressão econômica combinados à política ultraliberal do governo. Em  2015,  o governo Dilma  reagiu à crise com austeridade fiscal, enquanto Bolsonaro faz o contrário.  Agora começou a colocar em dúvida a própria manutenção do teto dos gastos públicos (pedra de toque neoliberal). O Brasil atingiu o menor número de pessoas abaixo da linha da pobreza na pandemia. O auxílio emergencial é superior ao valor do Bolsa família. Os que acreditavam que Bolsonaro não é um neofascista por ser liberal, talvez tenham que rever sua definição de fascismo. Não há novidade histórica na mudança radical de política econômica “fascista”, simplesmente porque o fascismo não tem nenhuma. Mussolini começou seu governo no sistema democrático contido pelos liberais e depois fez da Itália o país com o maior setor público no mundo, somente atrás da União Soviética. A ditadura brasileira de 1964 começou com um ajuste fiscal violento e evoluiu para o estatismo. Não sabemos se Bolsonaro, que nunca foi liberal por convicção, vai romper com a austeridade. Mas se o fizer, qual será o seu destino político? Esse é o centro do problema. Para alguns, ele seria removido se usasse o fundo público para fazer “bondades”. Para outros, a opção sub “keynesiana” pode representar uma reorientação na política econômica do governo Bolsonaro. Ao questionar o teto de gastos e acenar para uma renda básica ampla, o presidente evidenciaria que sua meta é conquistar maiorias e se reeleger. Seria possível constituir um novo cardápio de política econômica, que sem abandonar o arcabouço neoliberal, se distancie do fundamentalismo de mercado de Guedes, garantindo renda básica para metade dos brasileiros,  realizando algum grau de investimento público, sem, no entanto, alterar o núcleo estratégico da política econômica (aprofundamento do desmonte das políticas sociais, das privatizações e da desnacionalização)? Embora não se descarte as hipóteses de degradação das condições de governabilidade e de um impedimento, hoje elas parecem ser mínimas. Também é verdade que a opção pelo gasto social pode ter sido apenas um parêntese na trajetória do governo. No entanto, precisamos aceitar a possibilidade de que o parêntese se torne uma nova opção tática, ou até mesmo estratégica. Se assim for, não parece dado que ele será derrubado. Há uma autonomia do processo político concreto que o fascismo expõe em toda a sua brutalidade. Bolsonaro foi eleito não porque era a primeira opção burguesa, mas por ser a única. A burguesia brasileira, submetida à drenagem de parte do excedente econômico para fora, só tem a opção de voltar-se periodicamente para o mais puro egoísmo de classe. Não há base material para um domínio com hegemonia no Brasil, ou para um reformismo moderado contínuo. Os curtos períodos de crescimento acelerado e democracia racionada acabam apenas por renovar as ilusões da esquerda e de setores “civilizados” da burguesia num regime democrático. Ocorre que as classes trabalhadoras, quando adquirem cidadania política e fortalecem suas organizações partidárias e sociais, lutam e votam de acordo com seus interesses materiais e muitas vezes rejeitam programas liberais. As alternativas na mesa poderão ser, portanto, ou um governo fascista ou de esquerda, mas ambos com uma renda básica ampla. O problema para os de cima é que a esquerda não se contentaria apenas com isso e, mesmo  com limitações, lutará para recuperar direitos trabalhistas, gastos públicos universais em saúde, educação e cultura etc. A alternativa bolsonarista pode, ao manipular um novo mix de política econômica, associar o gasto social com o fim completo da legislação trabalhista, depauperamento das universidades e sistema público de saúde, mais dilapidação dos ativos públicos e repressão política seletiva a fim de impedir a volta de governos reformistas. Diferentemente do que os militares fizeram em 1964, Bolsonaro poderia finalmente sepultar o nacional estatismo, como se propuseram os golpistas de 1955 na Argentina, conforme lembra Ariel Goldstein[i]. A utopia de uma frente ampla antifascista se baseia na crença de que o empresariado sacrificaria o certo pelo duvidoso: abandonar Bolsonaro e emplacar o neoliberalismo soft, sem os arroubos fascistas, cooptando parte da esquerda, colocando-a como linha auxiliar. Mas, por que o fariam se o bolsonarismo tem demonstrado muito mais capacidade de defender o grande capital e ao mesmo tempo disputar o apoio popular com o PT? Há quem acredite que a própria burguesia poderia se recompor com o PT. Mantendo a comparação com a Argentina, poderíamos dizer que isso só seria factível se Bolsonaro levasse o país a tamanha fratura política que Lula ressurgisse como Perón na Argentina, em 1973. Deixemos de lado o que aconteceu depois.

A luta pode ser de longo prazo

Para a esquerda a equação é: disputar o eleitorado popular tendo como foco a luta pelas liberdades democráticas (em frentes amplas) ou no terreno social e das reformas estruturais (em uma frente de esquerda)? Obviamente, a esquerda jamais dissocia as duas coisas, mas uma parte do eleitorado sim. Bolsonaro é o antiLula por excelência. Como seu polo antagônico, ele tem algo em comum com Lula, mesmo que de forma distorcida. Ele é o pequeno burguês simples, desprezado pelo establishment. Como dissemos anteriormente, Bolsonaro situou a cultura e disputa ideológica no centro do debate político, enquanto a esquerda havia se tornado uma boa gestora de reformas sociais moderadas. Bolsonaro organizou uma base social neofascista via redes sociais e aparato das igrejas evangélicas hegemonizadas por lideranças fundamentalistas. Apostou na mobilização disruptiva, no discurso anti-instituições, nas – por alguns denominadas – “guerras culturais”. E tem funcionado até aqui. É impressionante que na disputa sobre a reação à pandemia – por diversas razões, inclusive o não oferecimento de alternativas econômicas reais –, o bolsonarismo tenha sido vitorioso anestesiando e normalizando a percepção da tragédia junto à maioria da população. A retomada da ofensiva por parte da esquerda passará, necessariamente, por retomar a centralidade da batalha pela hegemonia cultural, a guerra político-ideológica, a luta pelos valores de liberdade, da igualdade, do respeito ao meio ambiente, da pluralidade, da igualdade entre mulheres e homens, do antirracismo, da diversidade, da autonomia das pessoas e, portanto, da defesa do socialismo. Por outro lado, o que funcionou em 2018 pode não se repetir. A extrema direita não conseguirá alimentar as pessoas indefinidamente apenas com o discurso de ódio. É preciso lastro material e melhoria concreta da vida. As perspectivas econômicas são devastadoras (queda de 12% apenas este ano). Se Bolsonaro vai mesmo tentar constituir esse lastro material se livrando do fundamentalismo mercadista de Guedes, nós ainda não sabemos. Mas se o fizer, apenas uma candidatura de esquerda, com nitidez e base popular, poderá polarizar a disputa de 2022. Desde 2016, o que unifica a burguesia é a interdição ao campo popular em geral, do PT em particular e de Lula especialmente.

Lula Lá

Para além de isolar e tentar dividir o PT, a principal tática das elites tem sido a exclusão de Lula do cenário nacional. E há uma razão objetiva para isso: Lula traz em sua persona tanto a esperança de comida, quanto de diversão e arte. Ele é ao mesmo tempo o criador do Bolsa Família, das cotas para jovens negros e das políticas para população LGBT. Lula pode disputar a cultura, a ideologia, os valores da classe trabalhadora, das mulheres, jovens, negros e dos pobres e também um projeto econômico de direitos sociais – o lastro material. É verdade que talvez nem a força de Lula e do PT seja suficiente para derrotar alguém que tem a máquina do Estado, base popular crescente e o apoio do grande capital nacional e dos investidores estrangeiros (desde a adoção do instituto da reeleição em 1994 todos os presidentes foram reeleitos). Mas, se há uma esperança de polarização e disputa real ela passa pela candidatura de Lula, em 2022. Porque um liberal de centro, bom moço e com sensibilidade social não parece ser uma alternativa melhor, programática ou eleitoralmente. Contra a maldade encarnada no bolsonarismo Lula se tornou, ainda que à revelia, o bad boy de que o Brasil precisa para derrotar o neofascismo. Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Gramsci e a revolução (Alameda). Julian Rodrigues é militante PT-SP; professor, jornalista, ativista de Direitos Humanos e LGBTI. Nota [i]Goldstein, Ariel. Bolsonaro la Democracia de Brasil en Peligro. Buenos Aires, Marea, 2019. Este livro é a primeira síntese importante do processo que conduziu Bolsonaro ao poder.
Publicado, originariamente, no blog A Terra é Redonda.
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