Carmela Gross em gênero, número e grau

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Publicado Quinta, 18 de Abril de 2019 às 06:07, por: CdB

Com a individual Roda Gigante, que inaugura o Farol Santander de Porto Alegre, artista dialoga com o real e o improvável, com a virtualidade e a concretude do nosso tempo. Mostra fica em cartaz até 26 de maio.

Por Maurette Brandt/Plurale – de Brasília O impressionante salão do edifício histórico, plantado em pedra bem no centro da capital gaúcha, fervilha em expectativas. A poucos dias da reinauguração do espaço, que tem 15 anos de história na cena cultural na cidade, a equipe de montagem trabalha sem parar nos ajustes finais.
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"Roda Gigante", de Carmela Gross Carmela Gross
Carmela Gross e sua assistente, Carolina Caliento, acompanham cada passo com aquela incerteza tão normal em qualquer antevéspera: ajustam cordames, testam telas e vídeos, revisam objetos e trajetos, enquanto a supervisão de montagem se ocupa de variados acertos: iluminação, sistemas de tecnologia, colocação de legendas e plaquetas para leitura em braille em cada obra. Vicente de Mello, fotógrafo e artista plástico que assina as imagens do catálogo da mostra, percorre os ambientes com a precisão de um agrimensor, registrando tudo milimetricamente. É dele a foto da artista que abre a matéria, exclusiva para Plurale. A equipe de filmagem registra em vídeo impressões, flagrantes e depoimentos da artista, do curador e de outros especialistas. Ao olhar de quem chega, tudo parece pronto, mas o ajuste fino, competente e invisível, está em curso por toda parte. A obra inédita, Roda Gigante, se alça a alturas que não se mede com o olhar, ainda que esteja cravada no chão. As colunas do prédio, autênticas e imensas, desaguam num vitral esplêndido que logo capta o olhar: figuras helênicas enlaçam palavras como fortuna, troca, trabalho, progresso. Mas no momento seguinte, os cordames, numa teia que se parece com aqueles cruzamentos de laser que costumam proteger tesouros, nos atraem imediatamente e nos lembram que a Roda Gigante chega àquelas alturas como uma voz que ecoa os artefatos reais dispostos no chão, em contrapeso e presença. A primeira tentação é caminhar entre eles, mas a iniciativa é vã; as múltiplas ramificações de cordas de todo tipo e cor nos restringem, assim como na vida: aqui pode, ali na frente não. O irremediável configura novas alternativas, como pensou Carmela Gross ao confrontar a majestade do espaço do edifício com a apropriação diversificada da via pública por pessoas que têm de inventar habitats inusitados, fabricados com qualquer material ou objeto disponível. Baldes, livros, caixas de isopor, pesos, ferramentas, areia, esculturas de jardim, livros empilhados, engenhocas diversas. Todos eles clamam por seu valor e utilidade e estendem suas cordas ao alto, ora em espessos cruzamentos, ora em ballets acrobáticos e mesmo escaladas até a mais alta das colunas. Do céu de vidro, as musas observam, sem mover uma palha.

O percurso e a mostra

Carmela Gross é uma artista acostumada a remexer nas contradições humanas, a confrontar a cidade com quem a habita, a homenagear com delicadeza, e por vezes com imagens fortes, os sentimentos de toda gente que passa, que vive, que transita entre os espaços urbanos. São bons exemplos obras marcadas pela luz, como Aurora (2003) ou Eu Sou Dolores (2002), intervenções em áreas degradadas, como é o caso de Se Vende (2008). Uma de suas mais fascinantes propostas para espaços a céu aberto é Cascata (2005), escadaria variante em concreto e ferro que hoje impera na bela e recente orla do Rio Guaíba, nessa mesma Porto Alegre. Roda Gigante enuncia o ciclo de vida de objetos que já foram imprescindíveis e que, hoje, estão relegados ao esquecimento ou viraram outra coisa, em contraposição a toda uma vida virtual que acredita ser real, e que, no entanto, transporta muita gente a mundos que não têm qualquer conexão com a matéria viva do dia a dia. Enquanto se lucra com bitcoins, é fácil esquecer que embaixo, no mundo real, desigualdades se acentuam. Enquanto uma criança não consegue viver sem o celular, outra se preocupa com o que vai comer. O meio-termo, a solução, é areia movediça, em tempos de transformações velozes. Daí o enfrentamento sutil que a arte de Carmela Gross nos sugere, em suas variadas formas de expressão. Enquanto os finalmentes se sucedem rumo a uma esperada reinauguração do espaço, que marca também uma nova relação com o tempo cultural de Porto Alegre, a arte escorre pelos corredores e se avoluma também em altitudes improváveis. Obras que compõem um panorama específico da trajetória de Carmela Gross, cuidadosamente selecionadas pelo curador Paulo Myiada, podem, talvez, dar conta de situar o espectador num universo marcado pelo rigor e pela contundência como ferramentas de reinterpretar o mundo. A luz, em distintos formatos, é uma constante e marca muitas fases do trabalho da artista. Na via que circunda o espaço central ocupado por Roda Gigante, uma versão de Sul (2002) em neon se dependura com suavidade sobre nossas cabeças, reluzindo em vidro transparente, enquanto a Carga (1968), em sua crueza e despojamento, nos confunde e emociona. Perto de uma das saídas, a Negra (1997) se impõe como resistência e alerta: é uma mulher expandida, prestes a reagir ao que a rodeia. Luz del Fuego II (2018) é um vídeo que aparenta esmaecer, com o uso do preto e branco, o intenso matiz da primeira versão colorida, mas que, na verdade, aprofunda ainda mais a dimensão dos conflitos mundo afora que retrata, como termômetro de uma humanidade entre o caos e o impossível. Para quem um dia se aventurou a construir um céu como obra de tese, falo de Projeto para a Construção de um Céu (1981), não incluída no panorama, Carmela Gross está sempre ligada no mundo que acontece, no aqui onde as pessoas vivem e enfrentam seus próprios percursos, muitas vezes duros, sem esmorecer. Outras obras, como Asa (1995), Quasares (1983), (1989), 13 Passantes (2015/16), Monumentos (2000) e o instigante Figurantes (2016) revelam sua força e relevo no entorno da cena principal. Ao atingir o topo do prédio, por tortuosos caminhos internos, encontramos um andar de vidro, superposto aos vitrais do teto, que foi batizado de átrio. Difícil olhar para baixo, mas testamos nosso passo inseguro nesse território impreciso e elevado, onde testemunhamos uma inesperada apoteose: a obra Real People People are Dangerous, que explode em luz e cor, e que pela primeira vez é montada em sua dimensão original. Dois imensos letreiros luminosos, confeccionados com tubos de luz fluorescente vermelha, se colocam frente a frente, em lados opostos, e surpreendem o espectador. De dia, a profusão de luz natural é bem-vinda, mas à noite a sensação é insuperável, pela miríade de reflexos que a obra espalha e faz vazar para o chão, para o teto e em cima de quem trafega pelo meio. O impacto é tremendo.
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Carmela Gross conta que concebeu esse trabalho para a exposição SCAPE 2008, a Bienal de Arte em Espaços Públicos de Christchurch, na Nova Zelândia. A obra, no entanto, foi censurada: a direção do evento concordou em montar somente a frase Real People, em tubos de luz fluorescente, instalada em uma passarela de pedestres numa via importante da cidade, a Colombo Street. A artista chegou a planejar colocar o resto da frase, Real People, em outra passarela similar, na Kilmore Street, mas não foi possível. A descontinuidade espacial entre as duas instalações poderia provocar uma abertura de sentido, ou mesmo uma leitura ambígua; já as duas juntas, lidas como uma afirmação, refletem a retórica do medo que domina e controla muitos aspectos da vida contemporânea. No ano passado, em outra versão, a obra ocupou uma das salas do espaço de arte Auroras, em São Paulo.

Experiência ampliada

A tecnologia marca também sua presença, nem sempre adivinhada, nessa mostra. A produção do evento resolveu testar, ao mesmo tempo, um conjunto de possibilidades tecnológicas que ampliam a experiência do visitante, a começar por um aplicativo que oferece informações sobre as obras, falas da artista e do curador e muito mais. O refinamento aposta na conquista de um público jovem que ama a tecnologia e, muitas vezes, não sabe que ela também pode ser porta-voz da arte. A acessibilidade também ganha protagonismo: todas as legendas das obras têm placas para leitura em braille. Audiodescrição, vídeos em libras e audioguia estão também disponíveis no aplicativo, que pode ser baixado na Playstore ou neste link: https://play.google.com/store/apps/details?id=ionic.fourart

Programação inclui debates e conversa com a artista e o curador

A inauguração, dia 26 de março, foi apenas a largada para uma trajetória de dois meses. Roda Gigante fica em cartaz até 26 de maio , e, nesse meio tempo, o público terá a chance de acompanhar um ciclo de debates que discutirão a relação da obra da artista com a psicanálise, o cinema e a arquitetura. No dia 16 de abril é a vez de Arte e Psicanálise, que tem como convidados a psicanalista Tania Rivera e o psicólogo Edson de Sousa. No dia 7 de maio, o papo é sobre Cinema e Arte, com a artista multimídia Lucia Koch e a arquiteta e curadora Priscyla Goes. No dia 25 de maio, véspera do encerramento da mostra, Carmela Gross e o curador Paulo Miyada conversam com o público sobre suas experiências na construção de Roda Gigante. O encontro marca também o lançamento do catálogo da mostra – cuja versão eletrônica será disponibilizada para download gratuito no site (www.4art.com/capa) e traz diversos recursos interessantes, como o uso de voice-over para descrever textos, imagens e demais elementos. Roda Gigante, de Carmela Gross 26 de março a 26 de maio 2019 Curadoria: Paulo Miyada Projeto Carmela Gross: Roda Gigante Programação 16 de abril, 18h30, Arena Arte e Psicanálise – Convidados: Tania Rivera e Edson de Sousa 7 de maio, 18h30, Arena Arte e Cinema – Convidadas: Lucia Koch e Priscyla Gomes 25 de maio, 19h30, Arena Conversa com Carmela Gross e Paulo Miyada Lançamento do Catálogo da Mostra Reservas: 4artproducoes@gmail.com Farol Santander Porto Alegre Rua 7 de Setembro, 1028 – Centro Histórico Tel.: (51) 3287-5500 farolsantanderpoa@santander.com.br www.farolsantander.com.br Visitação: Terça-feira a sábado, das 10h às 19h Domingos e feriados, das 10h às 17h Ingresso: R$ 10 Entrada gratuita no último domingo do mês  
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