O credo dos oprimidos

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Publicado Sexta, 17 de Fevereiro de 2017 às 12:05, por: CdB

Roma não se deu conta de que catolicismo da ex-colônia, longe dos centros urbanos, que só iriam superar a população rural em meados do século XX

 

Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro

 

A partir de 1950, com a criação da Cruzada Nacional de Evangelização, começou a evangelização das massas, com o uso intensivo do rádio, concentrando seu proselitismo no poder de cura divina, marcando o começo da expansão do pentecostalismo no Brasil. Foram fundadas a Igreja do Evangelho Quadrangular, e em seguida: O Brasil para Cristo, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Casa da Benção, Igreja Unida, além de outras menores.

unnamed2.jpgMaria Fernanda Arruda é colunista do sempre às sextas-feiras
Correio do Brasil,

Cândido Procópio Ferreira de Camargo, em 1973, publicou o livro “Católicos, Protestantes, Espíritas”, precedidos de “Kardecismo e Umbanda” e “Igreja e Desenvolvimento”, fortalecendo a pesquisa no Brasil sobre a religiosidade como fenômeno social e político. No Brasil, até então “país essencialmente católico”, a Igreja Católica, que se permitia combater o kardecismo como heresia, começava a ser desafiada pelas seitas pentecostais: elas respondiam às necessidades dos imigrantes que vinham do Nordeste e das zonas rurais, violentados em seus valores culturais, na sua religiosidade mística e milenarista, buscando o milagre da sobrevivência nas grandes cidades.

Roma não se deu conta de que catolicismo da ex-colônia, longe dos centros urbanos, que só iriam superar a população rural em meados do século XX, sempre foi uma forma de religiosidade marcada por formas de intimismo que davam espaço para o culto dos santos, na espera do milagre, que tomaria forma de objeto no ex-voto, as procissões e as rezas, uma religiosidade rústica, aquela que Antônio Conselheiro construiu em Canudos. O pau-de-arara não permitiu que ela fosse trazida com os “baianos”.

Na cidade, a partir do Concílio Vaticano II, esse catolicismo devocionário e popular foi abandonado. O latim, a linguagem que, por ser divina deveria ser secreta, foi abandonada, substituída pela língua dos homens comuns; a solenidade divina, substituída pelo som humanamente intimista do violão. Deixavam-se de lado os responsórios e os cantos devotos, que afirmavam um Deus muito distante e ao mesmo tempo familiar e capaz de entender as dores humanas, substituídos pelas canções convocatórias para as lutas sociais.

Nos anos de 1970, as “comunidades de base” atraíram uma parcela considerável de um operariado que estava nascendo e que optava por elas, em detrimento do sindicato. Um levantamento de 1975 mostrou que 78% dos operários se declaravam católicos; e, mais impressionante do que isso, 30% frequentando assiduamente a sua igreja. A Igreja Católica que apoiou Lula, aproximando os estudantes dos operários, foi essa, a das Comunidades Eclesiais de Base, que Roma e os Quartéis trataram de sepultar. Mas uma Igreja que não chegou às favelas, à periferia, além dos bairros operários.

fundamentalismo.jpgCada um é portador de verdade mas ninguém pode ter o monopólio dela, nem uma religião, nem uma filosofia

A terceira onda, a neopentecostal, teve início na segunda metade dos anos 70. Fundadas por brasileiros, a Igreja Universal do Reino de Deus (Rio de Janeiro, 1977), a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (Brasília, 1992) e a Renascer em Cristo (São Paulo, 1986) são as maiores. Utilizam intensamente a mídia eletrônica e aplicam técnicas de administração empresarial, com uso de marketing, planejamento estatístico, análise de resultados etc. Algumas delas pregam a Teologia da Prosperidade, pela qual o cristão está destinado à prosperidade terrena, rejeitando os tradicionais usos e costumes pentecostais. O neopentecostalismo constitui a vertente pentecostal mais influente e a que mais cresce. Também são mais liberais em questões de costumes, sem prejuízo de sua pregação de moralismo rígido.

A doutrina de renovação do Pentecostalismo ultrapassou até mesmo as fronteiras do Protestantismo, surgindo movimentos de renovação pentecostal Católica Romana e Ortodoxa Oriental, como a Renovação Carismática Católica.

O que é esse admirável mundo novo? Fluidez do campo religioso, baixo grau de institucionalização das igrejas, proliferação de seitas, fragmentação de crenças e práticas devocionais, seu rearranjo constante ao sabor das inclinações pessoais ou das vicissitudes da vida íntima de cada um: esses seriam os sinais que revelariam a face da modernidade. Modernidade ambígua, no entanto, porque, de modo contraditório, ela mesma seria responsável por promover — surpreendentemente, se pensado que tudo isso surgiu como expansão do protestantismo, religião histórica da tolerância e do valor da razão como base da crença — o enrijecimento das posições institucionais, a disputa no interior do campo religioso em cada uma das confissões e a intolerância para com as crenças das igrejas ou formas de religiosidade rivais, elevando ao mesmo tempo o irracionalismo aparentemente mais delirante à condição de prova da fé.

Da mesma forma, à privatização e intimização das crenças e práticas constatadas no universo religioso corresponderia, contraditoriamente, mostrando uma outra face dessa modernidade, um envolvimento cada vez maior e mais complexo por parte das igrejas com o mundo social, sua busca de controle dos instrumentos de riqueza e prestígio, e a disputa aberta por posições de poder na vida pública, graças à participação direta na política.

O que realmente há de modernidade no neopentecostalismo? É a modernidade que o capitalismo globalizante impôs ao Brasil e aos brasileiros. Ele é a religião da modernidade,que não se confunde absolutamente com a religiosidade popular dos primeiros momentos do pentecostalismo no País, e que existe, tanto nas “seitas evangélicas”, como no “catolicismo carismático”. Não é expressão de religiosidade espontânea, mas sim um produto fabricado para as massas excluídas ou à beira da exclusão. Abre-se espaço para uma onda de misticismo histérico (provocado para ser assim), a multiplicação de milagres transmissíveis pela televisão. Os fiéis são chamados a uma participação ativa, consagram-se bispas e bispos com democracia extrema. Tudo se pode fazer, tudo se cobra e tudo se paga. Cria-se o fanatismo que leva ao messianismo, o milenarismo erigido em um Templo de Salomão.

A religião da modernidade não se esgota no neopentecostalismo, embora encontre nele o seu imenso contingente. Mas é uma religiosidade que se expressa também através do catolicismo carismático, de rituais que ensinam mantras e meditações, em arremedos de budismo. Enfim, a religião da modernidade se encontra em estantes e estantes de todas as livrarias, habitadas pela literatura de autoajuda.

As informações do IBGE mostram que o número de protestantes aumentou entre 2000-2010 em 61%. As igrejas evangélicas somam 42,3 milhões de fiéis: batistas (3,7 milhões), presbiterianos (1,5 milhão), adventistas do sétimo dia (1,5 milhão), luteranos (1 milhão) e metodistas (340 mil). Entre os pentecostais e neopentecostais, o grupo maior é o dos seguidores da Assembleia de Deus (8,4 milhões), Congregação Cristã do Brasil (2,5 milhões), Igreja Universal do Reino de Deus (2,1 milhões) e a Igreja do Evangelho Quadrangular (1,8 milhão).

O neopentecostalismo conforma um exército de excluídos, pobres e até miseráveis, que não guardam nenhum traço de religiosidade construída nos tempos de colônia, com os santos e procissões. E que fazem uma nova expressão de histeria coletiva, embalada pela repetição incansáveis de “aleluia, aleluia, aleluia” berrados a pleno pulmão, leituras extremamente malfeitas de textos bíblicos, milagres promovidos em linha-de-montagem, todos crendo que a sua condição é pecado, que só o dinheiro redime, e que se consegue, doando-se aquele que se tenha, mesmo que pouco, e mesmo o que não se tem, para glória de conforto dos pastores e bispos.

Já as igrejas neopentecostais organizam-se como empresas, arrecadam e lucram, isentas de encargos tributários, ostentando riquezas nos seus prédios imensos, monumentos ao gosto debochado que confunde os seus seguidores. Edir  Macedo Bezerra tornou-se em espaço curto de tempo o maior entre os bispos, senhor do maior rebanho de seguidores-contribuintes, construtor de templos monumentais, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, dono da Televisão Record  - um “tele-evangelista”. É apontado como o mais rico entre os ricos pastores que regem essa noite escura de ignorância.

Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil.

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