Hecatombe

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Publicado Sexta, 23 de Dezembro de 2016 às 09:29, por: CdB
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro

Aos deuses sempre agradam os sacrifícios que se lhe oferecem: até mesmo Jeová, o que discriminou sempre entre filhos bons e filhos maus, avaliando-os em razão do que lhe era oferecido: nas suas barbas brancas e voz relampejante ordenou a Abraão que lhe imolasse o filho. Os deuses gregos, menos brutais, de qualquer forma exigiam a prestação de sacrifício. A Zeus se imolavam, num só ato, cem bois: era então a hecatombe.

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"Ao ser medido o poder imenso da Samarco, que manda o governador de Minas Gerais pronunciar-se em sua defesa, isso nos seus escritórios,proibindo a Presidenta Dilma, então, na época, de mencionar a hecatombe"

Passados os séculos, permanece viva a palavra, mas significando a catástrofe, uma destruição de enormes proporções, com a perda de muitas vidas e muitos bens matérias. Ficou um fio que liga as duas hecatombes: é que as catástrofes são interpretadas por vontade divina: se Jeová destruiu com fogo a Sodoma e Gomorra, foi ele quem soterrou Pompéia e Herculano nas lavas do Vesúvio: quatro cidades que terão cedido ao pecado e merecido a ira divina! Daí que se alimente sempre a suspeita: tal catástrofe não será resultado de ira divina?

Existem três tipos de hecatombes: as que são provocadas por forças da natureza (terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, destruições pelo fogo e pela água); as que são provocadas pela natureza associada ao descaso dos homens (incêndios, enchentes); e enfim as que são provocadas exclusivamente pelos homens (a violência que, em seu grau mais alto, leva às guerras). Para os que têm seus olhos sempre voltados para a divindade, sempre são e serão “castigos de Deus”.

Como no Brasil não temos maremotos e nem terremotos, ficamos restritos a dois tipos, uma vez que jamais agradará a hipótese de responsabilidade exclusiva do ser humano. A destruição em Minas Gerais não deve ser associada à imperícia e menos ainda ao descaso criminoso da Samarco, que afunda o Brasil na lama do restilo do ferro.

Quais as que marcaram o nosso povo? Do fogo, herdamos a lastimável tradição das queimadas, forma rápida e econômica de limpeza do terreno e, mais recente, o projeto para transformação da Floresta Amazônica em pasto.Provocadas pelas águas, são muito mais. Em 1967, Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, foi em grande parte destruída pela lama e pelas árvores que desceram encosta abaixo, matando mais de 500 pessoas e deixando milhares de desabrigados.

Em 2011, o recorde de 800 mortos na região serrana do Rio de Janeiro comprovou que absolutamente nada foi feito para evitarem-sOs que desdenham de Jeová e lhe oferecem os frutos podres, caídos dos galhos? Em cidades, onde e novas hecatombes. Atribuir isso à ira dos deuses? À fatalidade? O que sempre importou foi o acobertamento da irresponsabilidade dos homens, dos especuladores imobiliários e dos administradores da Coisa Pública. Como São Luiz do Paraitinga foi quase toda destruída em 2010, uma cidade toda tombada pelo Patrimônio Histórico?

A ambição desmedida abriu a rodovia Rio-Santos, a ser parcialmente reconstruída a cada estação de chuvas, praticamente arrematou a obra dantesca de destruição da Mata Atlântica e tornou todo o litoral norte de São Paulo exposto ao risco maiores . Essa ambição, pune anualmente o Vale do Itajaí e a cidade de Blumenau, como se tudo isso fosse obra da fatalidade. A contribuição do Vale do Itajaí é menos expressiva: em 2008 morreram apenas 100 pessoas. Uma punição para os filhos de Caim? a topografia nos marca a existência de morros, para onde os marginalizados são extraditados, as chuvas avisam de hecatombes que as polícias pacificadoras não estão aptas e nem interessada em debelar: pobre já devia nascer morto!

Ainda associados às águas, o réveillon da morte, na Guanabara, com o afundamento de uma barca superlotada e precária, com a morte de 55 pessoas. Enquanto esses morriam, afogados na água, os responsáveis brindavam-se com champanhe? Há alguma forma de punição para esse crime? Em 2011, por incompetência e descaso da Chevron, o vazamento de petróleo, numa plataforma operada por ela, o oceano foi poluído com mais de 3.000 barris de óleo. O Ministério Público Federal cobrou da multinacional a indenização de R$ 40 bilhões, reduzidos a uma multa de R$ 95 milhões. Não se reconhece ao Brasil o direito de punir crimes cometidos por agentes norte-americanos.

E chegamos aos homens, como os grandes agentes provocadores . Alguns acidentes, como o da contaminação com o Césio 137 em Goiânia, em 1987, que resultou em quatro mortes e muita contaminações. Provocado por descaso dos que deveriam armazenar esse material corretamente, vale especialmente para que se ponha em pauta o descaso do Estado, em proporções muito maiores, assustadoramente maiores. Com grande destaque, o plano nacional para produção de energia nuclear, com a construção de três usinas em Angra dos Reis. As afirmações em contrário, por parte dos responsáveis não podem despreocupar: o Governo insiste na produção de um tipo de energia que está sendo abandonado em todo o mundo.

A irresponsabilidade do Estado é histórica. Já existindo muitos anos antes, em 1975 foi criada a NUCLEBRAS MONAZITA (NUCLEMON), ocupando instalações no coração de um bairro residencial (Brooklin Paulista), na rua Princesa Isabel, em São Paulo. Processava areia monazítica, produzindo a torta II, estágio para chegar-se ao mesotório, altamente radioativo. Os operários não tinham noção dos riscos e trabalhavam sem qualquer proteção. Faleciam em porcentagem assustadora, vitimados por câncer.

Em 1987, o acidente de Goiânia despertou a atenção do sindicato operário. Em 1991 a Câmara Municipal, através de uma CPI, constatou todas as irregularidades e descuidos dos responsáveis pela Nuclemon. Em 1992 as suas atividades foram encerradas. A fábrica demolida, o terreno foi incorporado por uma Construtora, levantando-se na área contaminada um grande conjunto de apartamentos, sem que qualquer autoridade pública se preocupasse. O lixo foi transferido e armazenado precariamente num terreno na avenida Interlagos. Nenhum órgão do Governo tem qualquer preocupação com isso. A própria Nuclemon pertencia ao Estado.

Descaso criminoso do Poder Público (o Estado, em seus três níveis) aconteceu em Cubatão, transformado em 1982 no Vale da Morte. A degeneração foi violenta e explodiu com o incêndio da Vila Socó, em 1984. A tragédia ganhou contornos nacionais e mundiais, pois a explosão dos dutos da Petrobrás, sobre os quais se erguia uma favela que foi pulverizada, pôs a nu os problemas advindos de políticas energéticas não planejadas e eivada de erros primários.

Uma tragédia incontável, pois nem a Prefeitura, nem o Governo Estadual nem a Petrobrás conseguiram precisar o número de mortos Na sequência,o desastre da Vila Parisi: encravada num polígono entre várias indústrias, nos fundos da Aciaria da Companhia Siderúrgica Paulista, a favela da Vila Parisi é um exemplo mundial de descaso e humilhação com o ser humano. O clamor mundial começou com constatação das doenças intimamente ligadas à miséria, a pobreza, a falta de saneamento básico, a poluição. Ocorreram as primeiras mortes neonatais por anencefalia, casos até hoje mal explicados.

Sem a expressão infernal de Cubatão, as cidades do ABC paulista, a partir de 1955, com a industrialização extremamente rápida, sem que houvesse qualquer forma de planejamento urbanístico e preocupação com as condições ambientais que se deterioravam, todas elas passaram a representar desrespeito aos seus habitantes e ao meio-ambiente.

As Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo se instalaram em São Caetano no ano de 1912, após o arrendamento da antiga fábrica Pamplona. Ao longo das décadas seguintes, o complexo cresceu e estendeu sua atuação para os mais diversos produtos, principalmente químicos, sendo fechada em 1986 pela Cetesb por diversos problemas ambientais, principalmente pela não-destinação dos resíduos finais da fabricação do veneno BHC, produto tóxico e cancerígeno. Constatou-se que o BHC ser a céu aberto, fato denunciado pelo odor fétido que exalava, causado mais de 100 mortes de moradores mais próximos, provocadas pelo câncer.

O espaço que era ocupado pela Matarazzo é considerado uma das 10 áreas de contaminação crítica do Estado, sob vigilância da Cetesb desde a década de 1960. Na década de 1990, investigações revelaram elevados níveis de concentração de mercúrio.
Na cidade de Mauá, pela terceira vez, a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) determinou a remoção das cerca de 350 famílias que vivem em 11 blocos do Condomínio Residencial Barão de Mauá.

Esses prédios estão localizados em áreas com contaminação crítica. Os problemas no local começaram no ano 2000, após explosão durante manutenção nas caixas-d’água subterrâneas vitimar um operário e ferir outro. Investigações da Cetesb apontaram a existência de 44 substâncias tóxicas que contaminam o solo. Uma delas, o gás metano causa graves danos à saúde e também amplia os riscos de explosões.

Ontem tivemos Bento Rodrigues, o vilarejo que existia tranquilo, ao lado de Mariana. Destruído pela mineradora Samarco, com o rompimento das barragens do Fundão e de Santarém, soterrado pela lama tóxica. A onda de lama contaminada com mercúrio, arsênio e ferro arrasou a comunidade que tinha cerca de 600 moradores. Cerca de 30 trabalhadores estavam no local na hora do rompimento. Fazendo mortes e o número de desaparecidos ultrapassa 100 pessoas, incluindo crianças.

A lama encaminhou-se para o rio Doce e poderá cimenta-lo. Chegou ao mar: cidade de Colatina, ES.

Os responsáveis, em primeiro momento trataram de tranquilizar: a lama tóxica não mata! e palavras de tranquilizadora e mentirosa ao povo.

A Samarco pertence à Vale do Rio Doce e à multinacional BHP Billiton, sendo uma das maiores exportadoras do País e ostentando lucros maravilhosos. Seguindo uma tradição que vem desde as mineradoras de carvão, nos inícios da Revolução Industrial, é uma empresa sórdida, imoral, que compra governantes e mata os governados, com o despudor de uma prostituta-rainha consumindo fábulas de dinheiro em propaganda mentirosa de uma imagem que transmite suas preocupações sociais e serve para silenciar uma imprensa corrupta.

Os brasileiros estão e ficaram condoídos, vendo no conforto de suas casas e poltronas as cenas lastimáveis que as reportagens de TV estão. E só isso.

Entenda-se a necessidade de uma revisão histórica extensa e minuciosa, como a que se procurou fazer. Os fatos que estão sendo lembrados, e vividos à época de suas ocorrências.

Ao ser medido o poder imenso da Samarco, que manda o governador de Minas Gerais pronunciar-se em sua defesa, isso nos seus escritórios, proibindo a presidenta Dilma, então, na época, de mencionar a hecatombe, e muito menos visitar a área atingida, cabe perguntar: por que? A resposta aponta para os bandidos culpados.

FHC não vendeu as empresas que faziam o patrimônio do Estado. Ele vendeu a Nação. Somos hoje uma economia exportadora de produtos primários, aquilo que Vargas quis negar. A sua grande herança, a indústria brasileira, que ele assentava na siderurgia, foi liquidada em hasta pública. Restou a legislação de proteção do trabalhador, que agora estão tratando de revogar.

Alguns mencionam o lucro formidável da Samarco, tão grande quanto o seu descaso pelo povo. Não foi lembrado ainda que boa parte desse lucro é assegurado pela “Lei Kandir”, que isenta as exportadoras de minério do pagamento de ICMS. É muito claro que a Samarco tem todo o direito de destruir, de porteira fechada, uma comunidade, eliminar fauna e flora. Tem todo o direito de fazer do Brasil um imenso depósito do seu barro.

A imprensa esteve calada, os políticos calados, o Congresso Nacional não abriu a boca e a Presidenta da República teve na época, extraídas as cordas vocais. E podemos assim tornar ao princípio da conversa: a hecatombe. Onde? Não em Bento Rodrigues, nem na Vila Parisi, nem no bateau mouche que não navegou nas águas da Guanabara. Hecatombe é o Brasil de hoje, desgovernado por políticos que, por certo, não temem a ira dos deuses.

Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil.

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