Meio século depois, eles estão de volta

Arquivado em:
Publicado Segunda, 10 de Dezembro de 2018 às 08:08, por: CdB
Nosso colunista Celso Lungaretti lembra a edição do Ato 5, pela Ditadura Militar em 1968. Faz meio século, porém as atrocidades cometidas não causam mais vergonha. O Brasil deu meia-volta e no seu retrocesso confirmado nas urnas, poderá mesmo decretar dia feriado o 31 de março ou o 1 de abril, em homenagem ao golpe militar de 1964. Os mais idosos têm alguma coisa para contar ocorrida nessa sexta-feira, dia 13 de dezembro de 1968, ou em decorrência dela. Para mim, foi a demissão da chefia da sucursal paulista da Última Hora do Rio por ter me declarado solidário com grevistas de outros jornais, ao receber a informação da deflagração da greve por um colega do Jornal da Tarde. A informação era prematura, acabou não havendo greve, mas meu destino tinha sido selado e, oito meses depois, eu partia para o exílio. Agora, que me preparo para retornar ao Brasil a fim de terminar minha carreira, terei de viver um segundo exílio? Espero e luto para que não seja preciso. (Nota do Editor) Por  Celso Lungaretti, de São Paulo:
DIRETO-CONVIDADO23-300x169.jpg
50 anos depois, a história poderá se repetir
Na próxima 5ª feira se terá passado meio século desde que o Brasil saiu não do azul, mas de um cinza já bem escuro, para entrar nas trevas absolutas do Ato Institucional nº 5. O 13 de dezembro de 1968 caiu numa 6ª feira –a mais funesta da História brasileira. Foi quando 17 sinistros personagens, com uma simples canetada, deram sinal verde para torturas, assassinatos, estupros, ocultação de cadáveres e todo o festival de horrores dos anos subsequentes.
"E você tendo ido, não pode voltar, quando sai do azul e entra nas trevas"
(Neil Young, Hey Hey My My)
Eram eles o ditador Costa e Silva e 16 de seus ministros: Albuquerque Lima (Interior); Augusto Rademaker (Marinha); Carlos Simas (Comunicações); Costa Cavalcanti (Minas e Energia); Delfim Netto (Fazenda); Gama e Silva (Justiça); Hélio Beltrão (Planejamento); Ivo Arzua (Agricultura); Jarbas Passarinho (Trabalho); Leonel Miranda (Saúde); Lyra Tavares (Exército); Macedo Soares (Indústria e Comércio); Magalhães Pinto (Relações Exteriores); Mário Andreazza (Transportes); Souza e Mello (Aeronáutica); e Tarso Dutra (Educação).
Só um permanece vivo até hoje, Delfim Netto, que está com 90 anos e não se arrepende da autoria de uma assinatura da qual tanto sangue jorrou: continua afirmando que, apresentando-se as mesmas circunstâncias, voltaria a proceder da mesmíssima maneira.
O 16º a falecer foi (em junho de 2016) o igualmente empedernido Jarbas Passarinho, de origem militar, que  ao proferir seu voto, disse a frase mais emblemática daquela infame reunião ministerial:
.
"Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência".
.
Ele continuou, pelas décadas adentro, enturmado com as aves de mau agouro, sempre defendendo o regime de exceção ao qual serviu nas equipes ministeriais de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.
Um mês depois chegou a vez de Rondon Pacheco, cuja assinatura não consta do documento, embora chefiasse o Gabinete Civil. Talvez a lacuna se deva a haver sido um personagem reticente naquele momento, tendo inclusive tentado fixar um prazo para a vigência do AI-5: um ano apenas. Também se atribui a ele e ao ministro da Justiça Gama e Silva o mérito de, numa reunião prévia, terem excluído do documento alguns pontos mais duros, como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Outra voz dissonante foi a do vice-presidente Pedro Aleixo, que inclusive empenhou-se adiante em restabelecer a legalidade. Chegou a convencer Costa e Silva, mas este morreu antes de concretizar o intento (coincidência?). O  golpe dentro do golpe, que levou ao paroxismo o fechamento ditatorial do País, foi o lance decisivo da disputa interna entre a linha dura militar (que queria radicalizar o arbítrio) e os conspiradores originais (oficiais veteranos da participação brasileira na 2ª Guerra Mundial).
Os últimos, encabeçados por Castello Branco, pretendiam usurpar o poder por pouco tempo. Falavam numa intervenção cirúrgica, durante a qual imporiam medidas que modernizassem o Estado e enfraquecessem a esquerda (prisões, perseguições, cassações, extinção de entidades legais, etc.). Aprenderam, contudo, que implantar uma ditadura é bem mais fácil que dar-lhe fim.
As duas posições competiram acirradamente pela hegemonia na caserna ao longo de 1968, mas o crescimento dos movimentos contestatórios fez a balança pender para  o lado dos ferrabrases.Estes iam ao encontro da cultura de intolerância que grassava nos quartéis, pois se propunham a dotar o regime de meios para reagir com maior contundência às manifestações de rua e ao desafio das organizações armadas, passando por cima dos direitos humanos e das garantias constitucionais.
Pesaram também os interesses mesquinhos dos oficiais das três Armas, seduzidos pelas perspectivas que o prolongamento do regime de exceção e a ampliação dos poderes ditatoriais abriam para seu enriquecimento pessoal:
  • os da ativa, como gestores de um setor estatal que estava sendo cada vez mais inflado, ou como beneficiários de suas boquinhas; e
  • os da reserva como facilitadores dos favores oficiais (quase todos os grandes grupos privados contrataram militares reformados para integrarem seus conselhos de administração, como forma de terem seus interesses contemplados nos altos escalões governamentais).
O pretexto para a nova virada de mesa foi um discurso exaltado do deputado Márcio Moreira Alves numa sessão esvaziada (o chamado pequeno expediente) da Câmara Federal, no início de setembro de 1968.
Discurso errado, hora errada
Tratava-se de uma lengalenga sem verdadeira importância (incluía até uma sugestão às moças, de que não namorassem alunos das academias militares –vide aqui), proferida apenas para constar dos anais e poder ser exibida depois aos eleitores, quando ele lhes fosse pedir votos no pleito seguinte. Mas, um jornalista favorável ao arbítrio vislumbrou a oportunidade de uma provocação e trombeteou-a; em seguida, os partidários do enrijecimento a divulgaram amplamente, mimeografada, entre os fardados, insuflando a indignação. As Forças Armadas se declararam atingidas e o governo pediu ao Congresso Nacional a abertura de um processo visando à cassação de Moreira Alves. Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões, tão vergonhosamente, se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles. Pateticamente, encerraram a sessão cantando o Hino Nacional, sem perceberem que tinham é escancarado as portas do inferno.
A resposta da ditadura foi imediata e a mais tirânica possível: colocou os Legislativos federal e estaduais em recesso e impôs à Nação, na marra, novas e terríveis regras do jogo.
Revista tida como outro pivô do AI-5
O presidente da República (escolhido por um Congresso Nacional expurgado e intimidado) passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto e julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.
Principal ferramenta do terrorismo de estado, o AI-5 só seria atirado na lixeira dez anos depois. Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos no olho da rua, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.
Quando os gorilas saíram do armário, o Brasil entrou no período mais bestial e vergonhoso de sua História.
.
UM DEPOIMENTO PESSOAL – Para jovens estudantes que, como eu, ingressaram na luta a partir do novo ascenso do movimento de massas,  aquele agourento 13 de dezembro de 1968 marcou o fim da aventura e o início da tragédia. Passáramos o melhor ano de nossas vidas descobrindo a luta e descobrindo-nos na luta. Aí veio aquele pacote de medidas draconianas ao extremo, cujas implicações captamos de imediato: haviam declarado guerra contra nós e os riscos dali em diante seriam imensos. Mesmo assim, diante da alternativa desistir x perseverar, fizemos a opção digna... que se revelaria das mais sofridas. Então, o AI-5 foi o divisor de águas entre o 1968 exuberante e o 1969 soturno.
Entre o enfrentamento a céu aberto e o martírio nos porões. Entre a luta travada ao lado das massas despertadas e a luta que travamos sozinhos em nome das massas amedrontadas.
Meu avô morreu quando meu pai tinha 11 anos. Como era o primogênito, minha avó fez com que começasse imediatamente a trabalhar  numa fábrica escura, barulhenta e empoeirada, burlando a legislação que exigia idade mínima de 14 anos.
Passou o resto da vida lamentando a responsabilidade que desabou cedo demais sobre seus ombros. Num dia, estava despreocupadamente jogando bola no campinho ao lado de sua casa. No outro, esfalfando-se oito horas seguidas para colocar o pão na mesa familiar.
O AI-5 teve o mesmo efeito sobre mim. Até então, a militância era puro deleite. De um momento para outro, tornou-se um pesadelo que me deixou em frangalhos, além de tragar alguns dos meus melhores amigos e tantos companheiros estimados.
Parafraseando a bela canção de Neil Young, foi a saída do azul e entrada nas trevas.
( https://www1.folha.uol.com.br/poder/2009/04/545663-leia-discurso-historico-do-ex-deputado-marcio-moreira-alves.shtml  )
Celso Lungaretti, jornalista e escritor, foi resistente à ditadura militar ainda secundarista e participou da Vanguarda Popular Revolucionária. Preso e processado, escreveu o livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial). Tem um ativo blog com esse mesmo título.
Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo