O feminismo negro de Paulina Chiziane

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Publicado Sábado, 01 de Novembro de 2014 às 13:00, por: CdB
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Mergulho no feminismo negro da escritora moçambicana Palina Chiziane
Se a literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente, abordado por ângulos que romancistas e contistas homens dificilmente vêem, imaginemos, então, o que pode ser o mundo visto por uma mulher africana, moçambicana, ainda mais se é governado por costumes e tradições que nos soam estranhos. Esse estranho e mágico mundo é o que oferece em seus livros Paulina Chiziane (1955), a primeira romancista negra de Moçambique. Diz-se aqui primeira romancista negra porque não seria correcto chamá-la de primeira escritora moçambicana, pois Lília Momplê (1935), nascida na Ilha de Moçambique, autora de livros de contos e de uma biografia, professora, funcionária da Unesco e ex-secretária-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, apareceu antes dela, já à época pós-Independência. E é provável que haja outras moçambicanas autoras de livros. Acontece que Lília Momplê, descendente de macua, é mestiça, carregando sangue europeu nas veias. E, se o critério for o de uma suposta africanidade, Paulina seria a primeira negra escritora de Moçambique, mas definitivamente não é a primeira moçambicana escritora. É claro que estes "divisionismos cromáticos" não levam a nada, até porque ninguém seria mais ou menos moçambicano por causa da cor da pele. Seja como for, o que se sabe é que na sociedade moçambicana destes dias há duas versões para esta questão: uma para consumo interno (que nem todos são tão escuros) e outra para consumo externo (mais abrangente). Isto sem contar certos "paternalismos colonialistas" que levam escritores de Moçambique e Angola, com raízes mais europeias do que afrobanto, a encontrar melhor recepção na indústria editorial, além de maior divulgação pelos meios de comunicação da antiga metrópole e do Brasil. Ou será que é só por falta de informação ou coincidência que na universidade brasileira, durante encontros sobre literatura africana de expressão portuguesa, só se fala em Mia Couto (1955), José Eduardo Agualusa (1960) e Pepetela (1941)? Afinal, não se pode dizer que Paulina Chiziane seria desconhecida no Brasil. De Paulina, a Companhia das Letras, de São Paulo, em 2004, lançou o romance Niketche. Uma história de poligamia, que a Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2002, enquanto seus outros livros ainda aguardam a boa vontade de algum editor brasileiro. Nascida em Manjacaze, na província de Gaza, ao Sul de Moçambique, Paulina viveu no campo até os sete anos, quando se mudou para os subúrbios da cidade de Maputo, onde frequentou estudos superiores de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu numa família protestante onde se falavam as línguas chope e ronga. No campo falava a sua língua materna, o chope, e, quando se mudou para a cidade, teve de aprender o português na escola, enquanto era obrigada nas ruas a falar o ronga, a língua nativa de Maputo. "Sou chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois arranjou uma barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma semana sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)". A voz da escritora moçambicana Paulina Chiziane é serena, mas o orgulho das origens é indisfarçável. Aprendeu a língua portuguesa na escola da missão católica. Aos 20 anos, cantou o hino da independência moçambicana, gritou contra o imperialismo e o colonialismo e, depois, com a guerra civil (1975-1992) que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus livros nem sempre falam directamente da guerra, mas de um país destruído, da miséria de seu povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte. Participou activamente da vida política de Moçambique como membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), na qual militou durante a juventude, tendo sido eleita nas primeiras eleições multipartidárias em 1994. Mas trocou a vida partidária para se dedicar à escrita, ao trabalho na Cruz Vermelha e à publicação das suas obras, provavelmente, desiludida com o machismo que ainda marca as relações políticas no país. II Em seu último livro, O alegre canto da perdiz (2008), além dessas questões que marcam a secular submissão da mulher ao universo do homem em certas sociedades africanas, Paulina leva o leitor a confrontar-se também com a questão do reducionismo praticado por quem olha a África de fora e procura apresentar a sua História e sua Literatura como se o continente africano se tratasse de um só país, tal como denunciou a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (1977) em seu discurso contra o perigo de se ouvir e repetir uma história única, a dos vencedores. (ADICHIE, 2009). Como muito bem observa Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Eduardo Mondlane, no posfácio que escreveu para este livro, Paulina, se não é a primeira, com certeza, é a voz que mais alto se eleva hoje para recuperar temas "esquecidos" por aqueles autores africanos de expressão portuguesa cujas raízes remontam ao colonialismo - ainda que sejam críticos ou tenham lutado contra o colonialismo -, ao aflorar temas como o racismo, a assimilação, a subjugação de valores africanos aos valores europeus, a poligamia, as relações de subserviência não só no lar, mas entre nações e grupos étnicos. Como o fizera em Balada de amor ao vento (1990), seu livro de estreia, com Sarnau, em Ventos do apocalipse (1999), com Minosse e Wusheni, em O sétimo juramento (2000), com Vera, e em Niketche (2002), com Rami, mulheres que vão à luta, em O alegre canto da perdiz, Paulina apresenta Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, uma geração de avó, filha e netas, personagens metonímicas que se desdobram e mostram os conflitos da sociedade na Zambézia, província moçambicana do Centro-Norte, onde a autora vive há largos anos. A metáfora unificadora deste livro está em que a Zambézia seria o centro do cosmos, com os Montes Namuli como o ventre do mundo ou o berço da Humanidade. E isso vem oportunamente ao encontro de uma investigação genética mundial hoje em curso denominada "The Genographic Project", da revista National Geographic, em parceria com a IBM, que aponta que a espécie humana saiu de um tronco comum africano e que o que existe hoje no mundo - e que, no passado, chamávamos de "raças" - são variantes de uma marca genética comum. Dessa forma, os actuais moçambicanos, independentemente de que nação sejam, segundo essas pesquisas, seriam do haplogrupo L0 do tipo mtDNA (mt de linhagem mitocondrial), que teria surgido há cerca de 100 mil anos na África Oriental, expandindo-se para o Oeste e o Sul e mesmo para fora de África. Surpreendente é o fato detectado de que partilhamos uma linhagem comum, ou seja, não seriam necessários mais que 20 mil anos para que africanos mais escuros e de olhos pretos se tornassem europeus nórdicos muito mais claros e de olhos azuis e vice-versa. "Toda a raça humana é mestiça de cruzamentos híbridos muito antigos". (CRAVEIRINHA, 2005, pp.103-104). A partir da reconstrução desse mito - que, agora, começa a ganhar bases científicas -, Paulina reconstitui também o mito da origem matricial do mundo. E por que a Zambézia? É que essa é a região africana em que se deu com maior intensidade a miscigenação, a ponto de ser conhecida como o Brasil da África. Ao revisitar os mitos da origem matricial, Paulina repete o que o antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), com base nas ideias do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942), baptizou de transculturação, vocábulo que mais bem expressa as diferentes fases do processo transitório de uma cultura para outra, pois esta não consiste em apenas adquirir uma distinta cultura, que a rigor é o que o termo anglo-americano acculturation significa com toda a soberba de quem o cunhou, mas o processo implica necessariamente a perda de uma cultura precedente, ou seja, uma parcial desculturação, e significa a criação de novos fenómenos culturais (ORTIZ, 1973, pp.134-135). Em outras palavras: não há aculturados, no sentido da perda de uma cultura própria substituída pela do colonizador (e no sentido africano o colonizador aqui não é só europeu, mas refere-se também a povos africanos e outros que colonizaram e subjugaram povos africanos, vendendo-os aos traficantes europeus). É o que se pode compreender melhor nas palavras do escritor peruano José María Arguedas (1911-1969), igualmente antropólogo: "Não sou um aculturado: sou um peruano que orgulhosamente, como um demónio feliz, fala em cristão e em índio, em espanhol e em quechua". (ARGUEDAS, 1975, p.282). O drama da África passa exactamente pelo que outros povos fizeram dela, o que não significa que se o continente tivesse continuado isolado, teria tido um futuro melhor. Um drama que Paulina soube como ninguém resumir nestas linhas de O alegre canto da perdiz: "As mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de passageiros, de vagabundos. Os negros converteram-se. E começaram a chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se. Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Sofia, Karen, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos". (CHIZIANE, 2008, pp.156-157). III Paulina recusa o rótulo de romancista, definindo-se apenas como contadora de histórias, inspirada naquilo que ouviu, quando criança e adolescente, da boca dos mais velhos à volta da fogueira. É o que faz em seu romance Niketche, nome que define uma dança de iniciação sexual feminina da Zambézia e de Nampula, no Norte do país, região predominantemente macua, onde está a Ilha de Moçambique, primeira capital das possessões portuguesas da África Oriental e local de desterro do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), por onde passaram também em épocas diversas os poetas Luís de Camões (c.1524-1580) e Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). É de lembrar ainda que na Zambézia, de que fala Chiziane, nas décadas de 30 a 50, ainda praticava-se o muhito que era uma cerimónia da puberdade feminina da região dos lomués (alguns deles, entre 1800 a 1840, foram levados para Santa Catarina e São Paulo como escravos), que etnolinguisticamente pertencem ao grupo dos macuas que também foram levados para o Brasil e espalhados da Bahia a Montevidéu, ao final do século XVIII, ápice do comércio negreiro na Ilha de Moçambique em direcção ao Sul da América. Essa cerimónia antiga, o muhito, consistia em preparar a jovem mulher para servir o homem (macho alfa) em plenitude quer no prazer sexual quer na alimentação. O romance conta a história de amor entre Rami, mulher do Sul e de nível social superior à da imensa maioria das mulheres do país, e Tony, alto funcionário da polícia em Maputo. Casada há vinte anos de papel passado e aliança no dedo e mãe de muitos filhos, Rami, desprezada pelo marido, desconfia de aventuras extraconjugais de Tony. Então, descobre que o marido tem mais quatro mulheres e muitos filhos. Vai à casa de cada uma das rivais, às vezes sai no braço com elas, mas, no final das contas, trava amizade com todas a ponto de, em certo dia, reuni-las em sua casa para fazer uma festa-surpresa ao marido. A iniciativa, porém, desperta a ira da sogra de Rami, para quem a monogamia é um sistema desumano que marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, "que dá teto, amor e pertença a umas crianças, rejeitando outras, que pululam pelas ruas". Diz a sogra: "O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira. És o pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem obediência. Ordena-as". (CHIZIANE, 2002, p. 125). Lobolo é o dote que o homem dá à mulher ao casar, mas lobolar aqui serve também para definir o ato de quem sustenta um lar. Ao conhecer suas rivais, Rami vai entrar em contacto com séculos de tradição e de costumes, a crueldade da vida e também com a diversidade de mundos e culturas que convivem em Moçambique. É difícil entender estes pensamentos sem conhecer a dimensão da tragédia africana. Em país de poucos homens - milhares morreram na guerra, muitos ficaram mutilados, outros tantos emigraram -, as mulheres, aparentemente, aceitam dividir seus maridos umas com as outras, embora a poligamia venha de tempos já perdidos, quando os cultores do Islã desceram a África e disseminaram suas crenças e costumes. Em alguns lugares de Moçambique, como na província sulista de Gaza, é comum que a mulher atenda ao chamado do marido de imediato, largando tudo o que está fazendo. Mais: quando o marido chama, ela não pode responder de pé. (CHIZIANE, 2002, p. 128). Também é difícil entender esta conversa sobre violência na família em que o imaturo Tony, fruto típico de uma sociedade patriarcal (CORREA, 2004), justifica a sua condição de polígamo: "Nunca maltratei a Lu, bati nelas algumas vezes, apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe sempre foi espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite (...)". (CHIZIANE, 2002, pp.282-283). Ou entender o conformismo de Rami: "(...) Transmito às mulheres a cultura da resignação e do silêncio, tal como aprendi da minha mãe. E a minha mãe aprendeu de sua mãe. Foi sempre assim desde tempos sem memória (...). (CHIZIANE, 2002, p. 254). IV Para as seguidoras de Simone de Beauvoir (1908-1986) e Flora Tristán (1803-1844), tudo isto, certamente, parece estranho, mas é a forma que Paulina encontrou de denunciar o sofrimento das mulheres africanas, subvertendo os valores tradicionais. Isso não significa que partilhe integralmente dos valores das feministas brancas. A dita civilização branca já levou tanto sofrimento à África que qualquer ideia, mesmo emoldurada por valores humanitários, sempre é recebida com desconfiança. E não poderia ser diferente. O trágico é que o grito de Paulina, dificilmente, será ouvido ou compartilhado pelas mulheres de Moçambique, pois os escritores africanos escrevem para o leitor branco de fora de seus países que pode comprar seus livros, já que, em razão dos altos índices de analfabetismo e dos baixos níveis socioeconómicos, as tiragens nos países africanos de língua portuguesa são ínfimas, o que não significa que em Portugal e no Brasil sejam muito superiores. Em Balada de amor ao vento (1990), seu primeiro romance, Paulina recupera as histórias dos rongas e dos chopes, que ouviu em sua infância, quando ficava a escutar a avó contar casos ao pé da fogueira. Os rongas, o povo do Sol Nascente, chegaram à região de Maputo há mais de 700 anos, procedentes dos Grandes Lagos. O povo chope veio da província de Gaza e da província de Inhambane, falando línguas bantu, da família Niger-Congo. Essas populações já estavam à beira da baía de Maputo quando os portugueses chegaram em 1502 à Terra dos Mpfumos (Grande Maputo), com o navegador Luís Fernandes à frente, numa caravela perdida de um comboio que seguia rumo à Índia (CRAVEIRINHA, 2002, p. 20). As duas línguas que compõem este grupo são o XiChope, falado principalmente nos distritos de Inharrime e Zavala e no posto administrativo de Chidenguele, e o biTonga, falado na cidade de Inhambane e nos distritos de Maxixe e Jangamo. Estas são as origens de Paulina. Uma das histórias de sua gente é a de Sarnau, a jovem que descobriu que amava Mwando, um rapaz que estava encaminhado para ser padre. Como o namoro não prosperava, cada um vai para um lado e Sarnau acaba virando uma das mulheres do rei das terras de Mambone. Paulina conta a história desse relacionamento, da juventude à idade madura, suas alegrias e sofrimentos, até a separação dolorosa e o reencontro. Mas, antes de tudo, trata do conflito vivido por uma moçambicana entre o mundo moderno e o mundo tradicional, a África arcaica, seus valores eminentemente machistas em que a mulher só existe para servir ao homem e constituir seu objecto de desejo. Depois de casada e bem casada, Sarnau vê Mwando reaparecer e vive outro romance. Perseguidos, acabam de novo separando-se. Mwando, depois de se envolver com a mulher de um sipaio (soldado), foi deportado para Angola, onde passou quinze anos a plantar cana e café. Um filho de Sarnau, gerado por Mwando enquanto ela era rainha, acaba coroado rei, depois da morte do presumível pai, enquanto a mãe é obrigada a cumprir um destino de prostituição para sobreviver. Este é um livro feminista, mas feminista à maneira africana: não é uma obra que desafie o estatuto da mulher africana ou moçambicana. Aliás, usar termos como africana e moçambicana é correr o risco das generalizações. No próprio Moçambique, há flagrantes diferenças: o Norte é uma região matriarcal, onde as mulheres têm mais liberdade, enquanto o Sul e o Centro são regiões patriarcais, extremamente machistas. E a narrativa de Balada de amor ao vento ocorre em Gaza, a mais machista de Moçambique, onde a mulher, além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de fazê-lo de joelhos. V Portanto, este livro traz o olhar do feminismo negro, que é diferente do feminismo branco, porque muito mais trágico. Ou alguém duvida que a mulher negra sempre foi muito mais oprimida e massacrada que a branca, que vive do suor de seu próprio rosto há muito mais tempo, que responde por sua própria família desde épocas imemoriais, embora fuja à luz da razão discutir gradações de violência? Basta ler Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, de Luciano Figueiredo, para se perceber que o papel da mulher - e, mais ainda, da mulher negra - sempre foi esquecido nos livros de História do Brasil, como se a colonização e a ocupação do território tivessem resultado apenas da acção do homem (FIGUEIREDO, 1997, p.16). E que teriam sido raras as mulheres europeias que migraram para o Brasil e para a América hispânica, até porque nos séculos XVI, XVII e ainda XVIII havia muitas restrições à presença feminina a bordo de embarcações. E, portanto, foram indígenas as mulheres que acolheram o afecto não só dos primeiros colonizadores como de tantos outros que continuaram a chegar ao Novo Mundo, bem como o fizeram as africanas e as miscigenadas, anos mais tarde, constituindo uniões consensuais e o concubinato, práticas contra as quais de pouco valia o pífio combate moralizante empreendido pela Igreja. Foi dessa população mestiça que nasceu, inclusive, a elite económica brasileira que nunca foi branca, embora sempre tenha procurado se passar por tal. Por isso, as poucas mulheres idealizadas por nossa poesia arcádica oitocentista, como Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e Bárbara Eliodora, de Alvarenga Peixoto (1744-1793), só foram incensadas pelo Romantismo do século XIX porque eram brancas, enquanto a negra Francisca Arcângela Cardoso, que deu quatro filhos ao mavioso Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e lhe inspirou vários poemas, está esquecida até hoje. Tal como na África a mulher negra na América também buscou suas próprias estratégias de sobrevivência, desempenhou papéis económicos, criou os filhos e protagonizou muitas histórias - que, com certeza, estão à espera do talento de uma Paulina Chiziane brasileira para contá-las como se conta histórias à beira da fogueira e seguir uma tradição iniciada pela maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira romancista negra do Brasil. ___________________ Para João Craveirinha, pela amizade e pelos subsídios fornecidos para este ensaio. (*) Publicado no livro Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana, de Rita Chaves e Tania Macêdo (organizadoras). Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, pp. 33-41. Adelto Gonçalves, jornalista, trabalhou no Estadão, Folha de São Paulo, Editora Abril e A Tribuna de Santos. Professor universitário, doutor em Literatura Portuguesa pela USP, autor dos livros Os Vira-latas da Madrugada, prêmio José lins do Rego, da José Olympio Editora; Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido e Tomás Antônio Gonzaga. Ganhou em 1986, o prêmio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portual. Professor universitário de literatura em Santos, na Universidade Paulista, Unip, e na Universidade Santa Cecília, Unisanta. Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins
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