Saudade da tia Ivone

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Publicado Quarta, 15 de Março de 2017 às 16:14, por: CdB

Como estamos vivendo uma época de eleger a mulher ao poder que ela merece, lembrei-me da minha tia Ivone que morreu ao completar 95 anos, quando ia receber um prêmio da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), por ter sido a primeira advogada mulher do país.

Por Maria Lúcia Dahl, do Rio de Janeiro:

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Lembrando a tia Ivone quase centenária

Estava animada e só falava disso, mas pediu para esperarem, pois não queria receber o prêmio, de braço quebrado, o que aconteceu ao saltar daquela barquinha do clube Caiçaras, que ela frequentava, na Lagoa.

Aos 95 anos queria arrasar no visual que minha irmã, figurinista da Globo, a ajudaria a escolher, e não com um gesso no braço que não combinava nem com o seu visual nem com sua cabeça, de onde saiam histórias divertidas sempre que eu ia visita-la. E além do gesso ser um trambolho, como ela dizia, em relação ao seu requintado figurino, ainda a impediria de tocar piano elétrico, uma de suas manias.

Ivone tinha histórias e expressões que só ela dizia. A de uma tia sua, por exemplo, e minha tia avó, que não conheci, chamada Margot, com quem o marido de sua irmã implicava, recusando-se a falar com ela, por achá-la antiquada e chata. Então, contava tia Ivone, que quando este seu cunhado, estava para morrer, no hospital, que seu último desejo, surpreendentemente, era encontrar tia Margot.

Sua mulher estranhou o seu desejo, mas, devido às circunstancias chamou-a para visita-lo no seu leito de morte, pensando numa tentativa de reconciliação.

Margot obedeceu e chegou ao hospital com seu chapéu de veuzinho preto. Então, o moribundo, no caso, seu cunhado, pediu para que Margot se aproximasse, afastasse o seu véu e chegasse o seu rosto o mais próximo possível do dele.

Comovida, Margot achou que ele queria fazer as pazes com ela, dando-lhe um beijo de despedida, e aproximou-se o máximo que pôde, do doente, que afastou o véu do seu rosto, sussurrando ao seu ouvido: “nariguda!”

E morreu.

Ríamos muito com minha tia Ivone que usava expressões que saíam do nada como a que ela empregava pra definir o horror que uma amiga sua casada com um milionário tinha a tudo que fosse chique, à ponto de vender seu apartamento no Arpoador e se mudar para uma casa em Araruama na boca da favela.

_Sabe o quer dizer isso? Perguntava tia Ivone. Nostalgia do reles.

E passei a acompanhar essa nostalgia do reles dessa sua amiga que aparecia em sua casa muito mal vestida, implicando com os tapetes persas de tia Ivone, que ela quis uma vez trocar um deles, pequeno e com aqueles desenhos orientais por outro onde se lia: “benvindo a este lar” em tons de verde e amarelo.

Minha tia agradeceu o tapete e me cotucou dizendo baixinho: “tá vendo o que eu disse? Nostalgia do reles!”

Fui dama de honra de tia Ivone, aos 5 anos de idade junto com um menininho de terno e gravata.

Depois que seu marido morreu e minha tia já tinha 72 anos, reencontrou um ex-colega de colégio, da sua idade, casou-se com ele, e disse que aquela tinha sido a maior paixão de sua vida.

Encarreguei-me do seu prêmio da OAB como um marco de pessoa moderna e transgressora que ela foi com seu estudo avançado e nenhuma nostalgia do passado nem do reles.

Maria Lúcia Dahl , atriz, escritora e roteirista. Participou de mais de 50 filmes entre os quais – Macunaima, Menino de Engenho, Gente Fina é outra Coisa – 29 peças teatrais destacando-se- Se Correr o Bicho pega se ficar o bicho come – Trair e coçar é só começar- O Avarento. Na televisão trabalhou na Rede Globo em cerca de 29 novelas entre as quais – Dancing Days – Anos Dourados – Gabriela e recentemente em – Aquele Beijo. Como cronista escreveu durante 26 anos no Jornal do Brasil e algum tempo no Estado de São Paulo. Escreveu 5 livros sendo 2 de crônicas – O Quebra Cabeça e a Bailarina Agradece-, um romance, Alem da arrebentação, a biografia de Antonio Bivar e a sua autobiografia,- Quem não ouve o seu papai um dia balança e cai. Como redatora escreveu para o Chico Anisio Show.Como roteirista fez recentemente o filme – Vendo ou Alugo – vencedor de mais de 20 premios em festivais no Brasil.

Direto da Redação, editado pelo jornalista Rui Martins.

 

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