Uma facada, pelo amor de Deus

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Publicado Segunda, 15 de Junho de 2015 às 16:04, por: CdB
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Quando um jornal sensacionalista precisa de uma vítima para sua manchete
Não era exatamente isso - uma facada, pelo amor de Deus! - que gritava Carlos Vinhais, secretário de redação da antiga LUTA DEMOCRÁTICA do Rio de Janeiro. Conta a lenda que num certo dia lá pela década de 60 do século passado não havia um morto de morte matada no IML, nem nos hospitais da dita Cidade Maravilhosa, sequer nos lugares nem tanto maravilhosos da Baixada Fluminense onde, dizia Stanislau Ponte Preta, até urubu voava de costa e certamente ainda voa. Então, contra essa aberração, contrariando todas as leis da teoria das probabilidades, Vinhais com as mãos na cabeça, subiu na mesa central da redação e gritou para o bando de repórteres: - Um cadáver, um cadáver pelo amor de Deus! Manchete sem respingo de sangue violava frontalmente a tradição da LUTA DEMOCRÁTICA. Um pouco mais sofisticado – e certamente mais versado na arte da manipulação – o jornal O GLOBO decidiu promover um festival de facadas no Rio de Janeiro, depois do assassinato do médico Jaime Gold, esfaqueado no dia 19 de maio quando pedalava em torno da Lagoa Rodrigues de Freitas, seguindo-se o vexame da polícia (melhor dizer a arbitrariedade) ao prender um menor totalmente inocente. Oito dias depois, O GLOBO estampou na primeira página a foto de um músico que reagiu a um assalto e foi ferido a faca. O oitavo esfaqueado no Rio de Janeiro em oito dias, proclamou o jornal, exibindo o ferimento que me parece não precisou nem de ponto. Não haver um arranhão de faca por dia num aglomerado já perto dos 7 milhões de habitantes é mais improvável do que a falta de um cadáver para a manchete da LUTA DEMOCRÁTICA, quando o Rio era bem menor. No entanto, o objetivo de O GLOBO e da chamada grande imprensa em geral não é incentivar um festival de facadas, mas insinuar que a maioria dos que seguram o cabo é formada de menores diplomados no crime nos becos do desamparo e da fome. É propaganda deslavada a favor da diminuiçao da idade de responsabilidade penal para meter na cadeia menores cujo maior crime foi terem nascido pobres, num país onde a distribuição da renda é simplesmente vergonhosa, ainda que tenha melhorado um pouquinho nos últimos anos. Para se ter uma ideia da vergonha da distribuição da renda no País vale lembrar os salários dos altos executivos, sobretudo no setor financeiro, ultrapassando os 80 mil reais mensais, sem contar os bônus e “ajudas de custos” em comparação ao mísero salário mínimo de 788 reais. Sem falar dos milhões vegetando em sub-empregos e no mercado informal e que nem isso ganham. Diante disso, é vergonhoso ver a classe média – quiçá o setor mais sensível à manipulação – protestar contra o bolsa família de 77 reais, com o cheiro nauseabundo de esmola. Os menores infratores, vítimas da miséria e de uma polícia truculenta, estão agora prestes a serem enviados para penitenciárias comuns, que são verdadeiras universidades do crime. Mas o negócio é ainda pior. Poucos vão passar no exame final. A maioria será reprovada pagando com a própria vida, depois de estuprada por marginais diplomados e policiais corruptos. Felizmente, para a classe média manipulada, são todos pobres. Não têm a menor importância. Tarcísio Lage, jornalista, escritor, começou na Última Hora de Belo Horizonte no início dos anos 60. Com o golpe de 1964 teve de deixar a cidade e o curso de Economia na UFMG. Até 1969, quando foi condenado pela Injustiça Militar, trabalhou em várias redações do Rio e São Paulo. Participou da tentativa de renovação da revista O Cruzeiro e da reabertura da Folha de São Paulo, em 1968. Exilado no Chile no final de 1969, trabalhou, em seguida, em três emissoras internacionais: BBC de Londres, Rádio Suiça, em Berna, e Rádio Nederland, em Hilversum, na Holanda, onde vive atualmente. As Tranças do Poder é seu último livro. Direto da Redação é um fórum, editado pelo jornalista e escritor Rui Martins
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