A imagem que o Lula desperdiçou

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Publicado Segunda, 22 de Janeiro de 2018 às 17:40, por: CdB

Qual a imagem que ficará de Lula, quando as paixões de hoje se exaurirem, quando o Brasil tiver conseguido ou não tiver conseguido sair desse atoleiro atual? Haverá sempre alguns saudosistas, mas será, sem dúvida, a do líder que dispunha das condições para mudar a História e tornar o Brasil o país exemplo na América Latina, em termos de conquistas sociais, mas que tudo desperdiçou.  Talvez pior, Lula decepcionou a esquerda não comprometida no seu projeto populista. Muitos de nós só nos desencantamos com Lula neste últimos anos, porém houve gente se desencantando bem antes. Um dos primeiros foi o frei Beto, veio a seguir o Plínio de Arruda Sampaio, o pessoal do Psol, a Marina Silva e outros tantos. Mexendo nos arquivos do site amazonense Taqui pra ti, mantido pelo nosso colunista José Ribamar Bessa Freire, achei a crõnica que segue abaixo, escrita em 2009, ou seja, há nove anos. Apesar dos sinais gritantes dos desvios de seus rumos já existentes, o PT fiel a Lula não se desviou da rota contrária aos ideais de criação do próprio PT, até trombar contra o muro e comprometer toda esquerda brasileira. (Nota do Editor Rui Martins).

Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói:

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Lula decepcionou, desencantou e desperdiçou a grande chance de reformas que o povo lhe dera

Tá certo! Eu sei, eu sei! Ninguém pode ser ingênuo! Lula é presidente da República graças ao voto popular. Mas foi também o voto popular que colocou, no Congresso Nacional, Sarney, Collor de Melo, Renan Calheiros, Romero Jucá, Jader Barbalho e uma série de parlamentares como Edmar Moreira – o deputado do Castelo, e mais uns 300 picaretas envolvidos em todo tipo de negociata e falcatrua. Lula não pode ignorá-los. Não tem saída: é com esse congresso que tem de governar o Brasil. A gente compreende.

Nesses quase sete anos – eu acho – Lula até que se saiu bem. Houve avanços em algumas áreas, permanecem carências e dificuldades em outras, mas o balanço global parece ser positivo. Sei que é duro engolir essa corja em nome da governabilidade. Mas tal sacrifício valeria a pena se, entre outros resultados, houvesse um fortalecimento daqueles princípios de moralidade e de justiça social defendidos pelo PT desde sua fundação.  Não é o que está acontecendo. Isso a gente não compreende.

O Partido da Ética

Na qualidade de presidente do Partido no Amazonas, tive o privilégio de estar presente em dois encontros nacionais do PT realizados em São Paulo, em 1980: em fevereiro, no Colégio Sion, quando assinamos o manifesto, e em junho, no Instituto Sedes Sapientiae, quando votamos o programa, o estatuto e o plano de ação do partido. A militância entusiasmada tinha consciência de estar criando um partido, símbolo da luta, da ética, da justiça social, da mudança, da esperança.  

Alguns militantes presentes nesses encontros tombaram, lutando, no meio do caminho, acreditando nesses princípios. É o caso de Chico Mendes e de Wilson Pinheiro de Souza, ambos do Acre, assassinados covardemente. Participei, na noite de 27 de julho de 1980, em Brasiléia, do ato público de protesto contra o assassinato do Wilsão. Havia um palanque improvisado na carroceria de um caminhão, em frente ao Sindicato. Lá em cima, estavam, entre outros dirigentes, Lula e Jacob Bittar, que usaram da palavra.

Os discursos eram intercalados por um silêncio tão profundo, que era possível ouvir o barulho dos insetos que martelavam a única lâmpada acesa na entrada do Sindicato. A camisa ensangüentada de sangue do Wilsão foi exibida para a multidão. O representante dos trabalhadores rurais de Cruzeiro do Sul discursou, ameaçando fazer justiça com as próprias mãos, caso o pessoal de Brasiléia não o fizesse. Na sua fala, Lula não teve alternativa: “Chegou a hora da onça beber água” – ele disse – reforçando a idéia do olho por olho, dente por dente. Foi processado por isso pela Justiça Militar.

Esse PT que queria a justiça social e defendia a ética na forma de fazer política, que cresceu na luta contra o clientelismo, o coronelismo, a corrupção, sofreu um duro golpe nessa semana. Três senadores petistas – entre eles João Pedro, do Amazonas – com seus votos no Conselho de Ética do Senado impediram que fossem feitas investigações contra José Sarney, contra quem pesam sérias acusações. A traição aos ideais pelos quais morreram Chico Mendes e Wilson Pinheiro transformou o Partido dos Trabalhadores em Partido dos Traíras.

Partido dos Traíras

Nos anos 80, Sarney foi chamado de ladrão pelo próprio Lula. Hoje, Sarney é acusado de desviar recursos públicos para sua fundação, de ter conta no exterior, de favorecer parentes por atos secretos, de beneficiar o neto que operava crédito consignado, de vender terras nunca registradas em seu nome e, com isso não pagar impostos, de ter se beneficiado de informações da Polícia Federal sobre inquérito envolvendo seu filho Fernando, num total de seis denúncias e cinco representações.

A votação no Conselho de Ética não era para condenar ou absolver Sarney. Era apenas para abrir as investigações, para apurar as denúncias. Mas a banda podre do PMDB (vixe, vixe!), comandada por Renan Calheiros, decidiu que Sarney é “ininvestigável”, contando para isso com os votos dos três senadores do PT, que seguiram orientação de Berzoini, presidente do partido, de acordo com determinações do Palácio do Planalto.

Do ponto de vista ético e político, o que é certo e o que é errado? Circula por ai um argumento cretino, de que as acusações contra Sarney fazem parte de um jogo político, de uma suposta manobra do PSDB e do DEM contra a governabilidade. Achando-se muito espertinho, há quem se pergunte: por que a grande mídia só levantou essas acusações agora, quando sabemos que as falcatruas vêm sendo cometidas há mais de trinta anos? Benditas contradições que abrem brechas como essas.        

Não manjo muito dessa política que passa por cima de princípios. Mas estou convencido de que Lula e o PT cometem um grande erro, quando tratam a questão da corrupção no Senado – da qual Sarney é um símbolo – como uma questão exclusivamente conjuntural de luta partidária, em vez de encará-la como uma questão ética, que comove a sociedade brasileira.

Um dos militantes históricos do PT, Plínio de Arruda Sampaio, hoje no Psol, pergunta: “Onde fica a ética e a coerência? O PT se criou lutando contra o Sarney e contra todos os valores que ele representa. E agora? Mudou o Sarney ou mudou o PT?”. Não é o Sarney, fraco e pusilânime, que apóia Lula. É Lula, com seu alto índice de popularidade, que sustenta Sarney. E essa é uma grande derrota do governo Lula: ter ressuscitado cadáveres e fortalecido alguns dos setores mais retrógrados da vida política brasileira. A militância petista esfriou. Isso será aferido nas próximas eleições.

Aqui no Amazonas, com que moral a gente vai tratar as – digamos assim – irregularidades do Amazonino e do Belão? (para não falar no Dudu Braga e no Cabo Pereira que contam com o apoio do PT local). Ou fazemos como o senador Arns, e manifestamos nossa vergonha pelo que aconteceu no Senado, ou nos tornamos cúmplices de todas essas maracutaias. O PT está ficando igualzinho aos seus antigos adversários. É doloroso para quem ajudou a fundar o partido ter de abrir parênteses, cada vez que escrever a sigla do PT (vixe, vixe!).

José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do Direto da Redação.

Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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