Filme de Walter Salles repercute nas famílias dos que sofreram violências ou perderam familiares durante a Ditadura Militar de 64-85. Celso Lungaretti rememora sua entrada na luta contra os militares e conta como sua filha reagiu depois do filme.
Por Celso Lungaretti, do blog Náufrago da Utopia

Lá pelos meus 16 anos, quando começava a me interessar pelo movimento estudantil, minha imaginação já voava longe.
Desencanei muito cedo do futuro insosso que meus pais e parentes projetavam para mim, pois fui me dando conta de que não queria formar-me engenheiro, ter casa própria na cidade e outra na praia, casar com uma esposa prendada, trocar de carro todo ano, etc.
O porvir sonhado pelos meus colegas de escola e pela turminha da rua Curupace mais me parecia um tédio infinito.
E cheguei até a elucubrar sobre como queria morrer, inspirado em leituras sobre a guerra civil espanhola, quando militantes de vários países se alistavam nas brigadas internacionais de apoio aos socialistas e anarquistas espanhóis, na heroica resistência que mantinham contra os fascistas de Franco.
Ingenuamente, acreditei que sempre haveria uma guerra tão justa assim à espera de mim, quando me sentisse velho demais para travar o bom combate.
Aliás, nunca imaginei que chegaria a septuagenário. Jamais me agradou a ideia de decair, de ficar sentado no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, como o Raul Seixas tão bem definiria em Ouro de Tolo.
Aí, quando eu já estava com 51 anos, nasceu a Luana. E, de imediato, mandou para o espaço os planos que eu tinha de, no momento certo, escolher a minha morte.
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Também depondo na auditoria da Marinha, um dia depois daquela foto famosa da Dilma |
Planos que, aliás, não eram mais tão fáceis de concretizar, porque as guerras deixaram de ser justas (viraram carnificinas hediondas!); e também porque sempre me repugnou a outra possível saída, o suicídio, tão dissonante das grandes esperanças que movem os revolucionários.
Hoje seria complicado encontrar por quem valeria a pena eu morrer lutando (desfecho que eu considerava o mais apropriado para a minha trajetória).
Mas aí nasceu a Luana, minha primogênita. Nunca entenderei direito por que, na virada do milênio, me veio tamanha vontade de ser, finalmente, pai biológico. Imperativa a ponto de eu aceitar rapidamente a mudança de planos, assumindo a responsabilidade de tudo fazer para alongar a minha existência, pelo menos até que a minha garotinha encontrasse o seu caminho e o seu palco nesta vida.
A ironia em tudo isto é que a Lu, após ver o filme Ainda Estou Aqui, postou no Tik Tok um vídeo sobre a própria experiência de filha de militante e conseguiu chamar um bocado de atenção, tanto que a BBC News Brasil acaba de inclui-la numa reportagem sobre quatro situações reais desse tipo.
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Batizamos tais cartazes de imortais da Oban. Eu sou o sétimo da lista. |
Eis um desdobramento totalmente inesperado para mim.
A vida é uma história contada por um idiota, repleta de som e fúria, significando nada, disse Shakespeare.
Ainda assim, ela tem seus encantos. E ver como nossos filhos ressignificam (para usar um termo da moda) as memórias que lhes transmitimos é um dos mais gratificantes.
Até ajuda a nos conformarmos com a nova condição de já não estarmos abrindo nossos caminhos e pedindo passagem, mas sim reduzidos a espectadores, enquanto os jovens tomam o nosso lugar.
É como cantou o inesquecível Sérgio Ricardo: Disse o velho, eis aqui o fim de tudo, veio o moço e continuou. (por Celso Lungaretti)
Por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, participou da luta contra a Ditadura Militar de 64-85
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brsil pelo jornalista Rui Martins