I. F. Stone, um grande jornalista norte-americano, falecido em 1989, costumava aconselhar os jornalistas mais jovens a começar a sua formação profissional com duas palavras: "governos mentem". Este conselho nunca foi tão atual e nunca foi tão pouco seguido como hoje. As pressões internas e externas a que a ação governativa está sujeita são cada vez mais intensas, menos transparentes e menos democráticas. As contradições entre os programas eleitorais e as políticas de governo são, assim, cada vez mais gritantes e seriam insustentáveis se os governos divulgassem os verdadeiros motivos da sua atuação. Por exemplo, se o governo português divulgasse as verdadeiras pressões e motivos que subjazem à proposta de alteração do sistema de pensões, desacreditar-se-ia perante os que o elegeram.
Acresça-se que as possibilidades de manipulação dos veículos de mídia nunca foram tão grandes (a politização dos veículos) como contrapartida do imenso mercado midiático em que a política se transformou (a midiatização da política). Nestas circunstâncias tornou-se mais fácil e mais necessário mentir sempre que a manutenção do poder está em causa. E, pelas mesmas razões, tornou-se cada vez mais difícil encontrar jornalistas e órgãos de comunicação social dispostos a fazer investigação séria que contrarie com fundamento as versões oficiais.
Um dos países em que este problema tem hoje mais acuidade são os EUA. Nesse país, as versões oficiais têm tradicionalmente um enorme peso e tendem a ser reproduzidas como verdadeiras sem mais averiguações pelos grandes veículos de mídia. Os jornalistas que as questionam têm sido marginalizados, como aconteceu a I. F. Stone. A verdade é que ao longo dos últimos cem anos foram muitos os casos em que o governo mentiu, como se veio mais tarde a verificar, muitas vezes a partir de... fontes oficiais. As mentiras envolveram quase sempre decisões importantes que justificaram intervenções militares em países estrangeiros. Assim, continua hoje por esclarecer a causa da explosão no navio de guerra 'Maine', em 1898, no porto de Havana, que mobilizou o país para a guerra contra a Espanha com o objetivo de libertar Cuba (saiu a Espanha entrou a 'United Fruit Company').
Sabe-se hoje que o segundo ataque norte-vietnamita no Golfo de Tokin em 1964 foi, de fato, forjado pelos serviços secretos com o fim de justificar a escalada da guerra no Vietnã; que o ataque à fábrica de produtos farmacêuticos do Sudão em 1998 foi ordenado por Clinton sabendo que ela não produzia armas químicas; que o FBI nunca teve provas que ligassem a Al Quaeda a Saddam Hussein; que o governo teve conhecimento detalhado do ataque em preparação às Torres Gêmeas e nada fez para o impedir; que à data da invasão do Iraque o governo sabia que não havia armas de destruição maciça; que a luta contra o terrorismo, longe de estar a ter êxito, está a provocar mais terrorismo, estando hoje o país menos seguro que em 2001.
A acumulação recente de mentiras e a revolução nas tecnologias da informação e da comunicação explica o que, à primeira vista, seria impensável: o intenso debate em curso sobre a verdadeira causa do ataque às Torres Gêmeas (estaria o governo envolvido?), sobre o colapso das Torres (resultado do impacto ou de explosivos pré-posicionados nos andares inferiores?), sobre o ataque ao Pentágono (avião ou míssil?). O debate envolve cientistas credíveis e cidadãos do "movimento para a verdade do 11 de Setembro", e ocorre quase totalmente fora dos grandes veículos de mídia e sem a participação de jornalistas. Será que a internet, os vídeos e os celulares tornam a mentira dos governos mais difícil?
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).