Ação do Facebook atinge, em cheio, o ‘Gabinete do ódio’

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Publicado Quinta, 09 de Julho de 2020 às 12:51, por: CdB

Relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, a deputada Lídice Da Mata (PSB-BA), afirmou que a ação tomada pelo Facebook, na noite passada, é um elemento que ajudará no debate sobre o tema. A Comissão sofre pressão da base governista para entregar um relatório insípido sobre a matéria.

Por Redação - de Brasília

Após a decisão do Facebook, rede mundial com mais de 2 bilhões de integrantes, de banir funcionário público brasileiro lotado na Presidência da República brasileira e desarticular uma rede de perfis voltados ao discurso de ódio e à disseminação de notícias falsas, coloca o mandato do presidente Jair Bolsonaro em risco, tanto no Congresso quanto no Supremo Tribunal Federal (STF). O mandatário fascista já responde a processos que, diante dos fatos novos, ganham potencial explosivo.

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Tércio Arnauld Tomaz é o funcionário público citado pelo Facebook como integrante do 'Gabinete do ódio'

Relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, a deputada Lídice Da Mata (PSB-BA), afirmou que a ação tomada pelo Facebook, na noite passada, é um elemento que ajudará no debate sobre o tema. A Comissão sofre pressão da base governista para entregar um relatório insípido sobre a matéria.

— A existência (do esquema criminoso que atuou durante a campanha eleitoral e adiante, até o início deste ano, em favor do presidente Bolsonaro) já foi uma grande conquista. Iniciamos com as pessoas dizendo que não havia fake news. Estamos vivendo esse momento de auge de ataques de fake news ao jornalismo brasileiro, de notícias falsas sobre a pandemia, de notícias que abalam a estrutura, a vida das pessoas — disse Da Mata nesta quinta-feira, a jornalistas.

Seguidores

Além das consequências jurídicas da decisão do Facebook, há um parâmetro civilizatório da decisão.

— Tiramos as fake news do debate apenas da política eleitoral, se tornou um debate da sociedade como um todo. Isso já é uma conquista — acrescentou a deputada.

Na véspera, a rede social desarticulou uma rede de perfis e páginas na rede social e no Instagram, ligados ao gabinete do presidente Bolsonaro e de dois dos seus três filhos parlamentares, o senador Flávio Bolsonaro (RepublicanosRJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A rede mantinha 883 mil seguidores no Facebook e 917 mil no Instagram.

— A decisão (do Facebook) foi muitíssimo importante porque era a única forma que temos de obter esses dados. Já tínhamos conseguido chegar por exemplo ao Eduardo Guimarães também por um dado fornecido pelo Facebook. Aí eles entram na Justiça para impedir que a gente tenha acesso aos dados. O próprio Facebook se negava a fornecer outros dados — relata a parlamentar.

Fake news

A relatora da CPMI, criada em setembro do ano passado, frisa que o nome de Eduardo Guimarães era ligado à empresa que auxiliou o Facebook na ação determinada, na véspera. Guimarães é secretário parlamentar de Eduardo Bolsonaro e estava ligado a ataques virtuais contra adversários políticos.

— Há um movimento internacional para combater as fake news e a sociedade começa a se organizar nessa direção. Há reação dos patrocinadores, das grandes marcas com o Facebook, e o Facebook está sentindo necessidade de mudar de postura — disse a deputada,

No futuro, Da Mata acredita que haverá o recrudescimento no combate às notícias falsas.

— Isso tudo vai contribuir para que o nosso trabalho se desenvolva melhor porque o caminho que o Facebook apresentou agora vai ao encontro àquele que estamos investigando na CPMI. São os mesmos perfis, os mesmos nomes, no inquérito (das fake news) do Supremo (Tribunal Federal) também, o que demonstra que tanto o inquérito do Supremo quanto a CPMI estavam e estão no caminho certo — comemora.

Transparência

Ainda nesta quinta-feira, a CPMI das Fake News solicitou ao Facebook o material de contas falsas removidas da rede que eram ligadas à família Bolsonaro, para embasar a discussão que retornará a Plenário, no próximo mês. O primeiro a apresentar requerimento, nesse sentido, foi o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele pediu que o Facebook inclusive preserve "todo o conteúdo disponível" das páginas ligadas ao esquema.

— Vamos receber esse conteúdo e, a partir daí, decidir se convocamos os envolvidos — disse a jornalistas o o senador Angelo Coronel (PSD-BA), que preside a comissão.

Para o presidente da Câmara, o Facebook e as demais plataformas de mídia social têm responsabilidade sobre o conteúdo de suas redes. Principalmente, “sobre a transparência das informações”, afirmou o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), nesta manhã.

Quem financia

Maia disse que não se pronunciaria, diretamente, sobre o envolvimento de assessores do presidente Bolsonaro e de dois de seus filhos para disseminar notícias falsas, porque não tinha todas as informações a respeito. Mas ponderou que as redes sociais “têm responsabilidade sobre o que passa, principalmente na necessidade de transparência, de saber quem esta atuando”.

O presidente da Câmara acrescentou acreditar que o Congresso aprovará nas próximas semanas uma legislação sobre o tema.

— Vamos conseguir fazer, nas próximas semanas, uma lei que de fato garanta a liberdade de expressão, mas também garanta que informações falsas, informações na linha de viralizar o ódio, contra as pessoas, contra as instituições, contra a democracia, de fato precisam de punição, e a gente precisa saber de forma transparente quem são essas pessoas e quem financia todo esse processo contra a democracia brasileira — afirmou Maia.

Rede social

Na noite passada, o Facebook anunciou a derrubada de uma rede de distribuição de fake news e perfis falsos ligada ao PSL e a funcionários dos gabinetes do presidente Bolsonaro, do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e dos deputados estaduais bolsonaristas Anderson Moraes (PSL-RJ) e Alana Passos (PSL-RJ).

Técnicos da rede social identificaram 35 contas, 14 páginas e 1 grupo, além de 38 contas no Instagram, que pertence ao Facebook. O grupo contava com 350 participantes. Já as páginas no Facebook somavam 883 mil seguidores, e os perfis do Instagram, 917 mil. 

O material disseminado pela rede é composto por conteúdos relacionados às eleições, memes políticos, críticas à oposição, ataques a empresas de mídia e jornalistas, além de material enganoso relacionado ao coronavírus. Segundo a rede social, parte do material já havia sido removido da plataforma por violar os padrões de comunidade, incluindo conteúdos com discurso de ódio.

Comportamento

O Facebook anunciou a remoção em uma transmissão online para jornalistas. Trata-se de uma operação global para combater redes de desinformação que operavam através da plataforma em vários países. Além do Brasil, foram derrubadas redes em Estados Unidos, Ucrânia, El Salvador, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador e Chile.

— Não podemos afirmar a ligação direta das pessoas citadas, mas podemos afirmar que pessoas associadas a eles e a seus escritórios se envolveram em comportamento inautêntico na plataforma — afirmou Nathaniel Gleicher, diretor de Cibersegurança do Facebook, sobre a rede bolsonarista, à agência inglesa de notícias Reuters.

Segundo o executivo, não há indícios de contratação de uma empresa para operar a rede no Brasil, como em outros países da América Latina. No entanto, os perfis e páginas teriam pago o total de US$ 1,5 mil em anúncios, no Facebook. Os detalhes da rede brasileira estão disponíveis no site do Atlantic Council’s Digital Forensic Research Lab, que pesquisa desinformação no Facebook.

Juan Perón

Para a professora Letícia Cesarino, do Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no entanto, a disseminação de notícias falsas está diretamente ligada ao estabelecimento da política populista de extrema direita, o neofascismo.

Graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2004), mestra em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) (2006), e doutora em antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (2013), na Califórnia (CA-EUA), Cesarino tem trabalhado e publicado nos campos da antropologia da ciência e tecnologia, antropologia digital, antropologia econômica e do desenvolvimento, globalização e estudos pós-coloniais.

— A teoria do populismo do argentino Ernesto Laclau, na qual eu me baseio, foi desenvolvida para entender populismos pré-digitais clássicos, como o de Juan Perón ou Getúlio Vargas. Hoje, ainda considero válido o núcleo da teoria, segundo a qual populismo é a construção da identidade de “povo” num contexto de crise, por uma liderança carismática que se diz antissistema, através de dois eixos discursivos articulados: uma fronteira antagonística opondo amigo a inimigo, e uma cadeia de equivalência unindo líder e povo — afirmou a antropóloga, à agência brasileira de notícias Rede Brasil Atual (RBA).

Marqueteiros

Ainda segundo Cesarino, “em todos os casos, o populismo opera com um tipo de linguagem essencialmente performativa, na qual o emissário (líder) e receptores (povo) da mensagem não preexistem enquanto tais ao ato comunicativo que os une, mas são constituídos por ele”.

— Vimos, claramente, como isso ocorreu no caso brasileiro, onde, num contexto de crise aguda, a multidão difusa que foi às ruas em junho de 2013 foi sendo gradualmente construída enquanto “povo”, primeiro através do eixo antagonístico do antipetismo e do movimento anticorrupção, e depois através da cadeia de equivalência mobilizada por Jair Bolsonaro em 2018, que operou com o tipo de simbologia mais elementar e previsível possível: em torno da ideia da nação. A base para a irrupção populista já estava posta: tudo o que Jair Bolsonaro precisou fazer foi aproveitá-la para proveito próprio, valendo-se do seu carisma como alguém espontâneo e antipoliticamente correto (o “mito”) através de uma estratégia de campanha digital bastante sofisticada e bem planejada — acrescentou.

Para a professora mineira, “a diferença do populismo digital está, creio, no seu tipo especial de eficácia: as mediações digitais permitem fractalizar o mecanismo descrito por Laclau para a rede de seguidores do líder, que passam a reproduzi-lo de modo espontâneo. Na era pré-digital, a eficácia da liderança populista dependia muito das suas capacidades pessoais – oratória, por exemplo”.

— Hoje, boa parte desse carisma e capacidade mobilizadora passa não pela pessoa do líder, mas por atributos das próprias mídias digitais, dos memes aos algoritmos. Todo populista bem-sucedido hoje precisa ser também um bom influenciador digital. Mas no caso brasileiro, diferente de outros, interveio uma contingência que se mostrou crucial: o atentado à faca sofrido pelo candidato. A partir desse momento, formou-se o que eu chamei do “corpo digital do rei”, onde o corpo de apoiadores de Bolsonaro (os autointitulados “marqueteiros do Jair”) substituiu seu corpo físico debilitado na campanha eleitoral, o que foi determinante para sua vitória — avalia.

Nesse ponto, acrescenta a antropóloga, “a campanha Bolsonaro surfou num elemento de eficácia que é próprio do modelo de negócios das redes sociais atualmente, que se baseiam no user-generated content, ou conteúdos gerados pelos usuários”.

Disparos

Em linha com a análise de Cesarino, o cientista político e membro do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB) Jorge Rubem Folena acredita que a derrubada pelo Facebook de contas e páginas ligadas ao clã Bolsonaro reforça a necessidade de acelerar os processos que correm no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Por trás da rede, o Facebook identificou funcionários dos gabinetes de Flávio, Eduardo e Jair Bolsonaro. Um desses funcionários, Tércio Arnauld Tomaz, é atual assessor especial do presidente da República.

No TSE, são quatro ações que apuram os disparos em massa de notícias falsas, por meio do aplicativo WhatsApp, durante a campanha eleitoral de 2018. Se comprovados os crimes eleitorais, como resultado, a chapa Bolsonaro/Mourão seria cassada. Segundo o próprio Facebook, as 88 contas e páginas tiradas do ar nesta quarta-feira também operavam, desde as eleições, com o mesmo objetivo de disseminar a desinformação.

Segundo Folena, “o Facebook fez o que as instituições do Judiciário não fizeram”.

— A fraude perpetrada na campanha, com mentiras por parte da chapa vencedora, foi de tal forma que induziu e contaminou todo o processo. Mais do que nunca, há elementos suficientes para o TSE cassar a chapa — afirmou o analista, à RBA.

Investigações

O cientista e advogado diz que há provas documentais e testemunhais que apontam para manipulações durante as eleições. Ele destacou o depoimento da deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) na CPMI das Fake News. Ex-aliada do clã Bolsonaro, ela deu relatos do funcionamento do chamado “gabinete do ódio” que opera nas redes sociais.

O empresário Paulo Marinho, suplente do senador Flávio Bolsonaro e ex-aliado da família, também relatou que, durante as eleições, agentes da Polícia Federal (PF) vazaram informações a respeito das investigações relativas ao esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Além disso, não apenas vazaram informações, como retardaram investigações, a fim de não prejudicar o desempenho de Bolsonaro na disputa eleitoral.

Para Folena, no entanto, é necessário pressionar para que o TSE atue com celeridade no julgamento desses processos. Caso a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão não ocorra até o final deste ano, não haveria a realização de novas eleições diretas.

A partir do ano que vem, caberia ao Congresso Nacional, em eleição indireta, escolher o presidente que cumpriria “mandato tampão” até as eleições de 2022.

— Me parece que é isso que tenta organizar o ‘establishment’, que não quer o afastamento de Bolsonaro agora — concluiu.

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