Arraes e o PCdoB

Arquivado em:
Publicado Sexta, 17 de Dezembro de 2021 às 06:45, por: CdB

 

A interlocução constante entre Arraes e o PCdoB em Pernambuco, há precisos 26 anos, desde que retornou do exílio, um rico aprendizado, forjou um relacionamento pautado pela confiança mútua e pela amizade.

Por Luciano Siqueira - de Brasília

Na quarta-feira, os pernambucanos celebraram os 105 anos de nascimento de Miguel Arraes, de marcante presença na cena política nacional. Presto aqui minha modesta homenagem republicando o texto que segue (publicado no Vermelho em 18/08/2005 e incluído no meu livro de crônicas “Como o lírio que brotou no telhado”, publicado pela Editora Anita Garibaldi).
miguelareluciana.jpeg
Luciana Santos e Miguel Arraes
Meados de 1986 ele se preparava para disputar pela segunda vez o governo do Estado, na condição de franco favorito. E, muito ao seu estilo, montaria a chapa majoritária como bem quisesse. Mas, numa conversa de fim de tarde no terraço de sua residência, em Casa Forte, nos pediu uma declaração pública desestimulando determinado pretendente a uma das vagas ao Senado. — Doutor Arraes — coube-me refutá-lo, até que concordamos com a sua opinião, mas não temos condições de fazer isso, falta-nos força e seria uma atitude quixotesca. Para surpresa nossa, estávamos eu e a Alanir Cardoso, ele explodiu possesso e aos gritos protestou: — Não estou pedindo atitude quixotesca coisa nenhuma! Pois vou chamar a imprensa e retirar minha candidatura. Vou dizer que a esquerda consequente não quer me ajudar! Foi quando apareceu, vindo da biblioteca, o bom e sempre cordato Ximenes, que prontamente apagou fogo: — Olá, pessoal, boa tarde! Vou pegar uma garrafa de whisky e os copos para aliviar o clima… O próprio Arrais rio do bem humorado cunhado e retornou a conversa, agora de forma descontraída. À noitinha, quando fomos embora, ele nos levou até o portão e, com um forte abraço, justificou-se: — Vocês desculpem por eu ter me alterado. É que na minha idade é preciso ter com quem polemizar. Em vocês eu confio, posso discutir a vontade. Foi desse modo o nosso relacionamento com esse grande militante da luta democrática durante quase 26 anos, desde que ele retornou do exílio, até falecer em 2005.

Trajetória de lutas

Na trajetória de lutas de uma nação há combatentes que se salientam em algum momento. Poucos, entretanto, têm presença marcante por largo período, como Miguel Arraes, influente líder político por mais de cinco décadas. Muito se tem escrito sobre ele, após o seu falecimento, sábado último, aos 88 anos. Mas pouco se tem comentado sobre três das suas melhores qualidades: a defesa persistente e conscienciosa da soberania nacional; uma enorme sensibilidade para com as condições de existência do povo e a manutenção de duradoura aliança com os comunistas, mantida em diferentes situações. Firmeza na defesa de suas convicções é sem dúvida uma virtude, quando não resvala para a intransigência cega ou o anacronismo infenso às transformações da realidade. A compreensão de Arraes acerca da questão nacional, nas suas diversas dimensões, ao contrário de alguns outros nacionalistas, jamais cheirou a naftalina. Ele cuidou de atualizá-la no tempo histórico e de fundamentá-la através do estudo acurado dos problemas.

Periferias urbanas

A paciência para ouvir e a sensibilidade para captar o sentimento e as necessidades dos habitantes das periferias urbanas e do meio rural, em muito atenuou, nas três vezes em que governou Pernambuco, as limitações inerentes a um governante apegado a concepções e métodos de gestão antiquados, ultra centralizadores. Isso se refletia no trato com membros do governo, que considerava ineficientes se incapazes de aliar a competência técnica ao relacionamento direto com o povo. Líder inorgânico, praticamente sem intermediários na sua relação com o eleitor, nunca se empenhou em organizar partido político. Frequentou alguns e só se ocupou em dirigir, de alguns anos para cá, o PSB, que presidia. No entanto, queixava-se da fragilidade da estrutura partidária brasileira e costumava mencionar o PCdoB como exemplo de organização lúcida e disciplinada. Em ocasiões de crise, quando a dispersão das correntes populares parecia predominar, sugeria que o Brasil poderia romper com a dominação estrangeira se se unissem os comunistas e as Forças Armadas em torno de um projeto nacional capaz de galvanizar o povo e amplos segmentos da sociedade. A interlocução constante entre Arraes e o PCdoB em Pernambuco, há precisos 26 anos, desde que retornou do exílio, um rico aprendizado, forjou um relacionamento pautado pela confiança mútua e pela amizade, inabaláveis mesmo quando afloravam divergências e seguíamos caminhos discrepantes.

Luciano Siqueira, é Médico, vice-prefeito do Recife, membro do Comitê Central do PCdoB

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo