Biden e a Nicarágua

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Publicado Terça, 09 de Novembro de 2021 às 06:59, por: CdB

 

Não estamos precisamente diante de um homem santo que personifica a essência mais primitiva dos valores democráticos. Quem fala é um político do império que diz o que lhe convém e nada mais.

Por Atilio Boron – de Buenos Aires

Os rigorosos comentaristas do processo político na Nicarágua não pouparam críticas para tentar desqualificar o processo eleitoral deste domingo. O presidente Joe Biden foi direto: disse que tudo não passava de uma “pantomima” e que a eleição “não era livre nem justa e certamente não era democrática”. Reproduz, curiosamente, as críticas que milhões de pessoas nos Estados Unidos, seguidores de Donald Trump, fazem sobre a eleição presidencial que o elevou à Casa Branca. Ele teria de ser mais cuidadoso ao fazer essa crítica precipitada, especialmente quando, em menos de um ano, o índice de desaprovação popular de sua gestão aumentou de 35 para 51 por cento. E também registre-se que as credenciais democráticas do chefe americano são bastante frágeis.
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Joe Biden e Daniel Ortega

Aventuras militares criminosas

Como senador, Biden apoiou as aventuras militares criminosas de seu país no Iraque e na ex-Iugoslávia, neste último caso em violação a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Como vice-presidente, ele acompanhou as políticas de Obama, que incluíram intervenções sangrentas na Síria e na Líbia, onde os chamados “lutadores pela liberdade” patrocinados por Washington lincharam Muammar Gaddafi. E tolerou com seu silêncio as tentativas de golpe na Bolívia 2008 e no Equador em 2010, enquanto apoiava o “golpe institucional” contra Manuel Zelaya, em Honduras 2009, aquele que destituiu Fernando Lugo no Paraguai 2012 e a “pantomima” brasileira de impeachment contra Dilma Rousseff em 2015-2016. Adicione-se ainda seu apoio às tentativas de desestabilização política e social em Cuba (Operação ZunZuneo) em 2014, e concluiremos que não estamos precisamente diante de um homem santo que personifica a essência mais primitiva dos valores democráticos. Quem fala é um político do império que diz o que lhe convém e nada mais. Ao que já foi dito acima, devemos acrescentar algumas considerações sobre as eleições na Nicarágua, indispensáveis ​​mesmo em sua brevidade. Em primeiro lugar, que ao se julgar um processo político ou, mais estritamente, um processo eleitoral, não é um fato menor discernir se o país em questão vive em uma situação normal ou não. Para fins didáticos, suponha o que aconteceria se os Estados Unidos fossem perseguidos e atacados por uma potência cem vezes mais poderosa em termos econômicos, políticos e militares, e submetidos a uma série interminável e sufocante de sanções econômicas, diplomáticas e outras. O funcionamento de sua democracia certamente seria profundamente afetado e situações anômalas surgiriam do ponto de vista da pureza normativa da teoria democrática. O país do Norte nunca viveu uma situação como essa,

Chefe da Casa Branca

É surpreendente que o chefe da Casa Branca desqualifique o governo nicaraguense, mas permaneça calado diante da “exemplar democracia colombiana” tão elogiada pelo porta-voz oficial do império, Mario Vargas Llosa. De acordo com a agência alemã de notícias Deutsche Welle, insuspeita da simpatia chavista, “mais de 900 líderes sociais foram assassinados desde 2016” sem que a Casa Branca e seus meios de comunicação colonizados e porta-vozes políticos em toda a América Latina abrissem a boca para condenar o genocídio perpetrado pelo governo de Iván Duque. Entre janeiro e agosto de 2021, 143 vítimas do modelo de democracia colombiana, uma média de um assassinato a cada dois dias. Como é possível condenar a imperfeita democracia nicaraguense e apoiar e endossar a matança sem fim produzida pelos governos amigos dos Estados Unidos na Colômbia. Esse duplo padrão é suficiente para desqualificar moralmente os críticos da Nicarágua. Se não querem condenar o governo colombiano, a única coisa decente que podem fazer é ficar calados, se ainda tiverem alguma decência. Finalmente: é preciso lembrar que o primeiro grande teórico da democracia, Jean-Jacques Rousseau, não tinha muitas ilusões quanto à viabilidade de sua proposta. Mais de uma vez ele comentou que “a democracia perfeita só pode existir em uma sociedade de anjos”, e as sociedades são feitas de sujeitos multiformes, egoístas, raramente virtuosos e muitas vezes estúpidos. Um dos fundadores da nação norte-americana (e quarto presidente dos Estados Unidos) James Madison, inspirado por Rousseau, escreveu em seu famoso Federalista número 51 que “se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário”. Visto que homens (e mulheres) não são anjos, nenhuma democracia funciona totalmente de acordo com as estipulações da teoria, nem nos Estados Unidos nem na Europa. Ainda menos quando um país é sufocado pela agressão externa. E isso às vezes significa que a escolha que os cidadãos enfrentam não é entre um elenco de pessoas virtuosas e angelicais, mas entre seres de carne e osso, filhos de suas biografias, suas neuroses, delírios e fantasias, sempre dominados por suas paixões e interesses. Diante dessa realidade, a racionalidade atribuída a eleitores e candidatos sofre uma redução e surge a confusão. Como escolher bem? Felizmente existe uma bússola infalível, especialmente na América Latina: se o império demoniza um dos candidatos, esse é o bom. Ou, em qualquer caso, o menos ruim. Porque não há anjos neste campo de Marte que é a política. Max Weber se lembrou disso quando a definiu como “a guerra de deuses opostos”. O resto é lirismo. E isso às vezes significa que a escolha que os cidadãos enfrentam não é entre um elenco de pessoas virtuosas e angelicais, mas entre seres de carne e osso, filhos de suas biografias, suas neuroses, delírios e fantasias, sempre dominados por suas paixões e interesses. Diante dessa realidade, a racionalidade atribuída a eleitores e candidatos sofre uma redução e surge a confusão. Como escolher bem? Felizmente existe uma bússola infalível, especialmente na América Latina: se o império demoniza um dos candidatos, esse é o bom. Ou, em qualquer caso, o menos ruim. Porque não há anjos neste campo de Marte que é a política. Max Weber se lembrou disso quando a definiu como “a guerra de deuses opostos”. O resto é lirismo.  

Atilio Boron, é sociólogo e PhD pela Universidade de Harvard, é professor de Teoria Política e Social na Universidade de Buenos Aires.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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