Biden: Ser de esquerda ou não. Esta não é a questão!

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Publicado Sexta, 14 de Maio de 2021 às 11:38, por: CdB

Deve-se observar que a pandemia da covid-19 trouxe para a realidade a dureza das desigualdades nos Estados Unidos. Neste grande país, o mais rico do mundo, não há sistema de seguridade social e a taxa de poupança é muita baixa ou quase inexistente para as famílias mais modestas.

Por Marilza de Melo Foucher - de Paris Esta reflexão surge depois de assistir às reações de alguns jornalistas e intelectuais brasileiros e franceses classificando o novo presidente norte-americano, Joe Biden, de esquerda... De esquerda ou não, os 100 dias de Biden no cargo da Presidência norte-americana teve anúncios surpreendentes! Seu plano de relance é o mais social de todos os tempos, nos Estados Unidos. Ele não se limita aos estímulos econômicos, ele rompe com o tabu da dívida pública e redesenha o papel do Estado providência norte-americano numa virada Keynesiana que põe em causa os 40 anos de neoliberalismo. Bastou uma frase de Biden para despertar uma enorme curiosidade e empolgar a ala esquerda do partido democrático.
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Presidente Joe Biden discursa na Casa Branca, em Washington (EUA) e questiona o sistema neoliberal norte-americano
Joe Biden afirma que a teoria do “trickle-down” nunca funcionou! O presidente Biden quer acabar com o tratamento fiscal preferencial que beneficia os ricos. No dia 28 de abril, o presidente dos Estados Unidos propôs uma série de medidas com o objetivo de aumentar os impostos para o 1% mais rico, preservando a classe média. Joe Biden disse que havia chegado hora das empresas norte-americanas e o 1% mais rico dos EUA começarem a pagar sua parte justa. Tributar o capital financeiro era coisa impensável no império. Para explicar ao grande público do jornal, essa teoria econômica não comprovada e criticada pela maioria de economistas defende uma redução dos impostos para os mais ricos. O Estado deve permitir o enriquecimento dos que estão em melhor situação (os mais ricos) para que eles reinvistam no sistema econômico – através da poupança. (investimento) ou consumo - renda auferida. Isso ajudaria a estimular a atividade econômica e o emprego para o resto da sociedade. Biden, com seu plano, de relance enterra a teoria do “tricle-down”. A questão principal, portanto, não deveria centrar-se se Biden é ou não de esquerda. Plano Biden Deve-se observar que a pandemia da covid-19 trouxe para a realidade a dureza das desigualdades nos Estados Unidos. Neste grande país, o mais rico do mundo, não há sistema de seguridade social e a taxa de poupança é muita baixa ou quase inexistente para as famílias mais modestas; em particular para as minorias negras e hispânicas. Joe Biden denunciou o "escândalo" da crise da fome, por esta razão ele assinou dois decretos em 22 de janeiro para fortalecer a ajuda alimentar e os direitos sociais. Não podemos negar que Biden e os democratas estão promovendo outra prioridade muito mais ambiciosa e há muito negligenciada: o combate à pobreza e à desigualdade, entre outras raciais. Incluindo um plano de habitação social, alimentação, saúde e até mesadas familiares de até US$ 3.6 mil por ano por criança. Quem pode ser contra o Plano de Joe Biden? No máximo podemos também fazer uma provocação sobre os Estados Unidos e dizer que Biden é o Lula norte-americano ! Ele também tem seu plano de inclusão social! Investimento As principais medidas do Plano Biden prioriza as famílias de baixa renda com créditos fiscais substanciais; Uma das medidas mais marcantes previstas é sem dúvida, a ampliação dos créditos tributários para as creches, que até então não eram acessíveis as famílias mais modestas. Um novo cheque de US $ 1.400 para a maioria dos americanos, a extensão dos benefícios de desemprego ou as dezenas de bilhões de dólares alocados para vacinas e escolas covid-19 – já são bem conhecidas. Mas segundo o jornal britânico The Guardian, dentro das principais medidas a lei também prevê "o maior investimento da história para os nativos indígenas americanos" (US $ 31 bilhões) e "as maiores provisões para agricultores negros em meio século" (5 bilhões). Um plano digno do "legado de Roosevelt", afirma o jornal. O Presidente Biden martelou que o Estado deve investir para trazer soluções aos problemas da sociedade, ele deve ser o motor para transformar a sociedade! Ser de esquerda ou não, ninguém pode criticar as medidas sociais contidas no plano de relance do presidente norte-americano. O certo é que este Plano Biden nos questiona. Neoliberal Vivemos numa sociedade individualista, e, cada vez mais competitiva. Estamos diante de um estranho mundo, cada vez mais obcecado por números, a economia guia o nosso destino, porém, às vezes nos leva por caminhos incertos. Não devemos esquecer que todos os governos socialistas da Europa nos últimos anos aceitaram uma governança mundial que defendia uma concepção do Estado Empreendedor e a morte do Estado Providência. Nenhum desses governos, com algumas exceções, contestou os acordos de serviços gerais da OMC que liberalizavam os serviços públicos ao abrir as regras de concorrência. Os serviços públicos considerados como bem comum (educação, água, luz, correio, saúde, cultura, entre outros) podem ser privatizados. Quando o governo Biden se diz favorável ao levantamento das patentes das vacinas contra a covid 19, ele abala os alicerces da propriedade intelectual que também faz parte do GATS-OMC ... Chegou a hora de reativar o debate sobre o papel desta instituição de governança global! O modelo neoliberal com governança mundial lançou as bases para a ideologia neoliberal. Pandemia Por toda a Europa, as reformas econômicas, os projetos governamentais em geral foram realizados à margem dos procedimentos democráticos, porque a ideologia do neoliberalismo afasta a mediação política da ação coletiva. O pensamento neoliberal também paralisou o pensamento crítico, privando-o de meios para reagir. Os 27 países que compõem a UE estão sujeitos à austeridade orçamentária decretada pelos critérios de Maastricht (1992), segundo a qual, por exemplo, as instituições não podem ultrapassar 3% do déficit(1). Os Estados são obrigados a cumprir com essas exigências, o que resulta uma enorme pressão sobre os serviços públicos que nessas últimas décadas foram desvitalizá-los completamente. A pandemia removeu a máscara do neoliberalismo econômico em sua prática ideológica. A criação de uma governança global nas últimas décadas tem orientado os estados a abandonarem seu papel na gestão dos serviços públicos, deixando a responsabilidade dessa missão para o mundo empresarial. A governança mundial declarou a falência do Estado de bem-estar para dar lugar ao Estado empreendedor. A privatização dos serviços públicos seria então inevitável. Na França, em nome da eficiência econômica, muitos hospitais foram fechados e o número de leitos e serviços de emergência foram diminuídos. Poucos meses antes da pandemia, todos os chefes dos serviços hospitalares públicos na França renunciaram coletivamente para protestar contra a política neoliberal do governo Macron. A nova pandemia trouxe à tona as desigualdades que estruturam nossas sociedades em todos os níveis. Governança global O que essa pandemia revelou é que há uma necessidade urgente de revitalizar o Estado de bem-estar, que o presidente dos EUA entendeu e percebeu que a teoria do "trickle-down" nunca funcionou nos Estados Unidos. Os ricos não investiram na economia real, a desindustrialização é galopante, a infraestrutura americana está quase totalmente deteriorada, as desigualdades territoriais estão explodindo com um sistema de proteção inadequado. O país mais rico do mundo hoje tem uma pobreza profundamente enraizada ... Entre os 40 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os Estados Unidos vêm em quarto lugar na taxa de pobreza, com quase 18% dos americanos têm uma renda abaixo da linha da pobreza. A questão chave é de saber se a ação política de Joe Biden como presidente pode fornecer à esquerda novos elementos de reflexões sobre o novo papel do estado pós-pandêmico e da ideologia neoliberal na governança global. É hora de aprofundar os debates pós-pandêmicos sobre o futuro do nosso planeta, sobre os novos paradigmas, sobre as reformas das instituições multilaterais que governam o mundo (ONU, FMI, Banco Mundial, União Europeia, empresas multinacionais, transnacionais) para que não sejam mais tentados em nome da governança global de corroer as políticas de proteção social novamente. O que temos que levar em conta é que Biden entendeu os mecanismos de "financeirização" da economia americana que destruiu a economia real americana. Ele age para restaurar a potência americana priorizando resolver os problemas internos causados pela ideologia neoliberal. Ele busca também restaurar a imagem internacional dos Estados Unidos deteriorada pelo governo de Trump. Biden é apenas um centrista que pressionado pela ala esquerda do partido e pela ascensão de movimentos populares no Estados Unidos, graças a esta correlação de forças, diga-se de passagem bem diferente da época de Obama, adota medidas bem progressistas e tem repercussão positiva junto a população marcada também pela pandemia do Covid19. De acordo com o Pew Research Center, 70% dos norte-americanos aprovam, incluindo 42% dos eleitores republicanos.(2) Vamos ficar atentos aos nossos erros e seguir em frente na busca de novos paradigmas! Ser ou não de esquerda. Esta não é a questão! Marilza de Melo Foucher é jornalista, economista e correspondente do Correio do Brasil, em Paris. (1) - (A regra dos 3% da União Europeia foi colocada em pausa em março de 2020, por cauda do Covid 19 ). (2) - (https://data.oecd.org/fr/inequality/taux-de-pauvrete.htm#indicator-chart)
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