O capitão que perdeu a guerra

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Publicado Terça, 11 de Maio de 2021 às 06:39, por: CdB

 

Muitas expressões originárias nos velhos e populares faroestes dos anos 40 a 60 foram traduzidas e adotadas pelo vocabulário dos machões brasileiros. Uma delas, usada por John Wayne em alguns filmes, dizia “não mande um menino fazer o trabalho de um homem”.

Por Jorge Gregory – de Brasília

Muitas expressões originárias nos velhos e populares faroestes dos anos 40 a 60 foram traduzidas e adotadas pelo vocabulário dos machões brasileiros. Uma delas, usada por John Wayne em alguns filmes, dizia “não mande um menino fazer o trabalho de um homem”. Esta mesma expressão foi usada com uma pequena variação, no início da pandemia por Bolsonaro, quando afirmou aos aloprados do cercadinho “temos que enfrentar o vírus como homem e não como moleque, pô!”. Estufou o peito, na ocasião, como se fosse o comandante motivando a tropa que se prepara para entrar em batalha. O problema é que, em caso de guerra, usando a mesma expressão, “não se deve mandar um capitão fazer o trabalho de um general”.
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Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante cerimônia do Dia do Soldado
Quando o vírus se disseminou pelo mundo e a OMS elevou a situação de epidemia para pandemia, a afirmação mais corrente era de que enfrentávamos um inimigo invisível e implacável. Inimigo? O tenente, porque a promoção a capitão foi somente um prêmio de consolação para afastá-lo do exército, deve ter imaginado que esta seria a grande oportunidade de mostrar sua capacidade de comando militar. Mostraria ao mundo como se enfrenta o mais terrível inimigo. No entanto, como falou Mourão em certa ocasião, até a patente de capitão é só musculo, o desenvolvimento intelectual do oficial só é trabalhado a partir do posto de major. Jair Messias Bolsonaro sequer chegou a capitão durante sua passagem pela caserna. A guerra, no decorrer da história de conflitos da humanidade, se transformou em uma arte. As escolas militares se aperfeiçoaram em formar comandos com altos oficiais especializados em estratégias e táticas de combate. Indivíduos capazes de analisar os terrenos de enfrentamento, o potencial militar do inimigo, o melhor momento de enfrentamento, os pontos fortes e os pontos fracos da sua tropa e do seu inimigo. Como afirmou Mourão, tais habilidades começam a ser desenvolvidas a partir da patente de Major, chegando ao ápice desta formação na de general. Entretanto, pelo que têm demonstrado no governo, tais habilidades, em nossos generais, incluindo o vice-presidente, são bastante questionáveis.

O papel do tenente

O papel do tenente, posto máximo que Bolsonaro conseguiu exercer em sua estada relâmpago no exército, é o inicial na carreira de oficial. Trata-se de oficial subalterno que comanda um pelotão. Em suma, numa circunstância de guerra, é um elo entre as ordens do alto comando e a tropa. Não cabe a ele analisar as circunstâncias, movimentos, táticas, estratégias. Cabe a ele tão somente executar o planejamento de batalha estabelecido por seus superiores. Normal, portanto, para muitos oficiais deste nível, que, em grande parte, possuem baixíssima capacidade intelectual, como Bolsonaro, acharem que o que decide uma guerra é a força bruta, é ir para o campo de batalha e “enfrentar o inimigo como homem, e não como moleque, pô!”. Quem fica estudando estratégias, procurando conhecer o inimigo e coisas do gênero, para este tipo de gente como Bolsonaro, não passa de maricas. Tem que mostrar que é macho e enfrentar o inimigo na porrada. Mas não podemos atribuir a definição da desastrosa orientação de enfrentamento à pandemia exclusivamente a Bolsonaro. Se no meio militar temos os tenentes e capitães que julgam ter a capacidade de generais, nas ciências administrativas e econômicas também temos os formados em cursinhos de motivação de final de semana, onde aprendem chavões como receitas prontas para qualquer circunstância. Um destes chavões, e talvez o principal, é o de que devemos transformar uma dificuldade em uma oportunidade. Tais figuras, que se acham altamente qualificadas em gestão, não passam de metidos a espertalhões que procuram sempre ter uma grande sacada diante de qualquer situação. Por vezes se saem bem, mas quase sempre cometem grandes besteiras. Paulo Guedes e sua equipe econômica não passam de membros desta corriola. Os conhecimentos desenvolvidos em torno da guerra, da política e da economia possuem alguns traços em comum. Nas ciências militares, pensadores como Zun Tsu e Carl Von Clausewitz desenvolveram os conceitos de tática e estratégia. Lenin, inspirado em Clausewitz, incorporou tais conceitos à luta política e a ideia de pensamento estratégico foi posteriormente aplicado na gestão do estado Soviético, resultando nos planos quinquenais como instrumento de planificação da economia.  Na década de 30, o governo norte-americano de então, diante do desafio de reerguer sua economia, para a formulação do New Deal se inspirou nos conceitos econômicos de Keynes e nos conceitos de planificação da economia soviética. Os conceitos de planificação foram posteriormente incorporados pelos empresários estadunidenses, resultando nas inúmeras teorias e métodos de planejamento estratégico que povoam o setor empresarial nos dias de hoje. Na guerra, política ou economia, a construção de um plano estratégico requer método para que se encontre soluções adequadas aos problemas postos. Não se trata de obra de achismo como pensa Bolsonaro ou de feeling como pensa Guedes.

A avaliação sanitária

Há um ano, e se achando grande general, Bolsonaro deve ter reunido seu estado maior, obviamente sem a pessoa mais importante, o seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Este não poderia participar pois “era agente infiltrado pelo inimigo para sabotar o governo”. A avaliação sanitária provavelmente ficou por conta de Osmar Terra, que deve ter orientado que a forma mais eficiente de sair da crise sanitária seria atingir a imunidade de rebanho, o que poderia ser alcançado em dois ou três meses se deixassem o vírus circular. Paulo Guedes vislumbrou nesta perspectiva a possibilidade de transformar a dificuldade em uma oportunidade. Poderia retomar a economia na frente das demais nações que adotavam lockdowns, atrairia capitais estrangeiros e o Brasil passaria a figurar como grande potência. Bolsonaro sonhou, com tal solução genial, em ser alavancado como líder mundial e grande estrategista ao lado de Trump. Qual o custo de tal estratégia? 10 a 20 mil vidas deve ter respondido Terra. Lamento muito, deve ter afirmado Bolsonaro, pois toda vitória também tem suas baixas. Restava convencer a população a aderir à estratégia e ir para a rua se contaminar. O próprio Bolsonaro passou a promover aglomerações, ridicularizar o uso de máscara e promover a distribuição de cloroquina para que os indivíduos acreditassem que estavam armados contra o inimigo invisível. Obviamente que há uma certa dose de ficção nesse relato, mas com certeza o que aconteceu não foge muito desse enredo. O que vai se evidenciando e provavelmente se confirmará com a CPI da covid é que foi consciente e intencional a promoção de um genocídio para que rapidamente se atingisse a imunidade coletiva, ainda que os precários conhecimentos do vírus apontassem para uma capacidade extraordinária de disseminação e para a possibilidade de a crise sanitária se tornar incontrolável. Não fizeram um estudo estratégico para estabelecer uma linha de ação e sim uma aposta, usando como moeda a vida e a saúde da população brasileira. Para muito além das projeções iniciais dos “estrategistas” do Planalto, a pandemia já passou de um ano e não se vê uma luz no fim do túnel. Das 10 a 20 mil baixas esperadas, já ultrapassamos as 400 mil e poderemos dobrar este número. A economia está quebrada e o país isolado do resto do mundo, pois o astuto plano de Bolsonaro e Guedes transformou o Brasil em um covidário. A vacina, único instrumento real de imunização, anda a passos lentos e Bolsonaro trata de criar novas crises na política externa para dificultar ainda mais a situação. Ou seja, o capitão, ou melhor, o tenente, perdeu a guerra e ainda não descobriu. Guedes, que não passa de um jogador que usa dinheiro alheio na bolsa de valores, já percebeu que sua aposta deu água e simula um recuo para salvar a própria pele. Bolsonaro, com sua baixa capacidade intelectual, acredita que sua vitória só não se consolidou porque os governadores e prefeitos estão atrapalhando a conquista da imunidade de rebanho e ameaça com a edição de um decreto que proíba a imposição de qualquer restrição de atividades. A CPI com certeza desmascarará este plano macabro, mas espera-se que conduza para uma solução definitiva, pois a permanência da atual condução até a posse de um novo presidente eleito, em 2023, produzirá uma tragédia cujos efeitos levaremos décadas para superar.  

Jorge Gregory, é jornalista e professor universitário, trabalhou no Ministério da Educação (MEC).

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