A CPI da covid e a banalidade do mal

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Publicado Segunda, 24 de Maio de 2021 às 06:35, por: CdB

Era 1960. O Mossad, o serviço secreto israelense sequestra Adolf Eichmann na Argentina, para levá-lo ao recém fundado Estado de Israel, 12 anos, para que fosse julgado. Eichmann foi um dos principais personagens do Nazismo e um dos organizadores do Holocausto judaico.

Por Urariano Mota – de São Paulo

Era 1960. O Mossad, o serviço secreto israelense sequestra Adolf Eichmann na Argentina, para levá-lo ao recém fundado Estado de Israel, 12 anos, para que fosse julgado. Eichmann foi um dos principais personagens do Nazismo e um dos organizadores do Holocausto judaico. O que não muda o fato de que a ação da Mossad foi ilegal e que a fundação de Israel da forma que foi feita, e que desemboca nesse estado apartado como é hoje e que massacra cotidianamente os palestinos, também, no mínimo, deveria ser considerada ilegal.
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Presidente Jair Bolsonaro
Hanna Arendt, filósofa judia alemã, autora de A Banalidade do Mal foi à Israel na ocasião, contratada pela Revista The New Yorker, para acompanhar o julgamento. E é ali, que Arendt aprofunda esse conceito ao se deparar com um Eichmann aparentemente “normal”. Não parecia ter diante dela e na frente de todos, um psicopata, um sociopata como conhecemos no senso comum. Havia um homem que amava sua família e que poderia ser seu vizinho, como foi vizinho já na sua vida oculta, de argentinos ou outros imigrantes alemães no país portenho. O livro surge justamente na sequência desse julgamento. Lá, Hanna Arendt defende que, por conta do resultado da massificação da sociedade, se criou uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, razão pelo o qual aceitam e cumprem ordens sem questionar. Isso, explicaria, aparentemente, o grande número de alemães que não só endossaram o Nazismo, como os que acataram ordens de forma robotizada, o que levou a máquina nazista a uma logística industrial de morte e sofrimento. E, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, muitos dos que fugiram para os EUA e países como a Argentina e até o Brasil, tentaram levar uma vida oculta. Longe de um passado de genocídio e vergonha.

Agentes nazistas

Obviamente o livro de Hanna Arendt esteve envolvido numa enorme polêmica, sendo criticado por muitas entidades judaicas. A crítica era a de que a obra retirava o caráter de “monstro” de muitos dos agentes nazistas e davam a eles uma forma humana. A forma de zelosos funcionários que sequer podiam deixar de acatar ordens. Afinal, monstros são fáceis de se lidar. A eles damos à morte! E estaria tudo resolvido. Aos humanos que acatam ordens como robôs, o que podemos dar? Julgamentos paliativos, porém necessários, mas que não ferem de morte a lógica institucional que fabrica funcionários tão leais e irracionais. Para se fazer isso, as coisas são bem mais complicadas. É preciso derrubar todo o sistema. Hannah Arendt, inclusive, antes grande defensora do Sionismo, passou a criticar as ações de Israel em relação aos palestinos. Viu ali o começo da mesma sistemática banalidade do mal que vitimou em larga escala seu povo e, iria massacrar a população palestina. Em 1971, na prestigiada Universidade de Stanford, na ensolarada Califórnia, o professor Phillip Zimbardo decidiu colocar em prática um estudo que ficou conhecido como o “Experimento Prisional de Stanford”. Ele espalhou mensagens pelo Campus e conseguiu reunir um bom número de voluntários, para então sortear, sem qualquer julgamento aparente, quem seria guarda e quem seria prisioneiro. A ideia era a de traçar um estudo psicológico das reações humanas em cativeiro. Ele, seria o guarda da prisão. Num porão da Universidade, ele mandou montar uma estrutura que lembrasse de forma bem real uma prisão. Com celas realmente gradeadas e trancadas. Fardas e objetos de contenção como cassetetes, para os guardas. Vejam bem: não havia como saber quem estava por trás de cada papel. Era o auge do movimento hippie e grande parte dos que ali estavam e faziam, tanto o papel de prisioneiro como o de carcereiro, eram pacifistas e estavam envolvidos na contracultura americana, inclusive de crítica a um estado policial e à Guerra do Vietnã. O problema é que a coisa saiu de controle muito rápido. Os falsos guardas incorporaram tanto o personagem que começaram a oprimir os falsos prisioneiros, inclusive com o uso de torturas. Os encarcerados logo agiram e começaram a fazer motins, tocando fogo em colchões e tentando se defender dos guardas. Um deles chegou a começar até uma greve de fome. E Phillip Zimbrado, no papel de diretor da prisão, começou a fazer vistas grossas aos atos criminosos da sua guarda e até a insuflar mais atitudes rígidas. Quando voltou a si, Zimbrado teve de cancelar o experimento. Ele durou apenas seis dias.

Bolsonarismo

Hoje, quando assistimos a CPI da covid aqui no Brasil e vemos do outro lado agentes tão leais ao Bolsonarismo, que se revezam entre mentiras, gagueiras e desmaios, percebemos como eles também são funcionários que acatam ordens como robôs. Longe de não terem culpa, porque são tão culpados quanto, também estão inseridos nessa banalidade do mal, como apontou Hannah Arendt lá atrás. Mas também são o próprio sistema dessa logística de morte, que vitimou hoje já quase 450 mil pessoas, em dados oficiais. Essa logística é fruto de uma política que tentou forçar uma absurda imunidade de rebanho, criminosa se matasse apenas uma pessoa, que nunca surtiu efeito e usou o Estado do Amazonas como cobaia, como um grande campo de concentração de experimentações cruéis que deixariam até Josef Mengele, o médico nazista, orgulhoso. Ela só desembocou em mutações do vírus, tornando-o muito mais mortal e contagioso, e que elevou o Brasil ao cargo de estado pária do mundo e grande ameaça à saúde global. Se for bem sucedida, a  CPI poderá condenar os tão fieis funcionários do Bolsonarismo, mas também ferir de morte, aí sim, e derrubar todo o sistema, se levar também para a prisão o mandante, ao menos em cargo, máximo do país, Jair Bolsonaro. Ou pelo menos chegar na sua deposição. Mas será preciso também retirar as Forças Armadas do Governo. Porque ela é esse próprio governo de morte, também.  

Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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