A desnecessária e absurda carta ao General

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Publicado Sexta, 03 de Março de 2017 às 12:00, por: CdB

Nota do Editor  - Faz alguns dias, recebi um email me propondo assinar e aderir a um abaixo-assinado caucionado por três nomes ilustres, primeiros signatários, Fernando Morais, João Pedro Stedile e Beto Almeida, cumprimentando o Comandante do Exército, Eduardo Dias da Costa Villas Boas, por sua entrevista à revista Valor Econômico.


Me certifiquei de que não se tratava de um email falso, fake como se diz, ou de uma brincadeira de mau gosto, ou de uma provocação. Diante do absurdo, tive de concluir ser um equívoco ou um delírio, para não utilizar expressão mais severa. Em todo caso, um acinte para todos quantos lutaram contra a ditadura militar e uma infeliz constatação da derrapagem ideológica da atual esquerda brasileira, sem memória e sem rumo.


Felizmente, me chegou uma interpretação desse deslize, assinada pelo petista dissidente Valter Pomar, cuja ortodoxia poderia ter evitado ao PT tantas trilhas falsas até à atual derrocada, ao arrepio de tantas esperanças populares agora perdidas.
Convido os leitores do Direto da Redação ao exercício comparativo da inqualificável Carta aberta ao Comandante do Exército com a análise dela feita por Valter Pomar, dentro do espírito do debate e do exercício da liberdade de informação que animam este Direto da Redação.


Boa leitura e boas reflexões, Rui Martins, Editor do DR.

Por  Valter Pomar, de São Paulo:   

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É aconselhável pedir ajuda a um militar na atual crise política brasileira?

O comandante do exército brasileiro, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas, concedeu no dia 17 de fevereiro uma longa entrevista ao jornal Valor.      

A entrevista pode ser lida no endereço http://www.valor.com.br/cultura/4872438/somos-um-pais-que-esta-deriva

O pretexto da entrevista são as greves de policiais militares e os massacres em presídios.

A entrevista foi percebida de diferentes maneiras, na esquerda brasileira.

Alguns apreciaram certas passagens da entrevista. E consideram tornar o general um interlocutor.

Outros lembraram certas atitudes recentes do general, por exemplo contra o memorial dedicado a Jango. Ademais, consideram que esta entrevista não deveria ter sido pedida, nem concedida.

Afinal, não compete a um general da ativa dar opiniões sobre a situação política do país. 

Não importa quais opiniões. 

Aliás, para que mesmo temos um ministro da Defesa?

A extrema-direita quer os militares como protagonistas ativos da situação política do país.

Não quaisquer militares, obviamente.

Aos que ocupam posição subalterna, vale a hierarquia mais dura.

A esquerda deve adotar outra postura: os militares têm o direito de votar. 

Mas se querem participar da luta política enquanto protagonistas, precisam ir para a reserva. 

A entrevista do general Villas Bôas é protagonismo político direto. E, por isto, inaceitável.

Quanto ao mérito -- pois já que a entrevista foi concedida, pode e deve ser lida -- confirmam-se os motivos de preocupação.

O general obviamente não quer as Forças Armadas substituindo a policia.

Mas considera que "empregos pontuais" são inevitáveis, devido à deterioração da estrutura de segurança nos estados.

Entretanto, diz ele, falta proteção jurídica adequada, que só existiria em caso de Estado de Defesa ou Estado de Sítio.

Cada um entenda como quiser esta parte.

Mas a parte seguinte é explícita.

O general considera que somos um "país à deriva".

Diferente de antes. Mas o "antes" dele não refere-se aos governos Lula e Dilma.

Segundo o general, até os anos 1970, 1980, tínhamos "identidade forte", "sentido de projeto", "ideologia de desenvolvimento".

Ou seja, quanto mais perto da redemocratização, mais nossa "identidade" estaria se acabando.

O general não esconde o que pensa. 

Ele considera que a Lava Jato é a "esperança", que o "protagonismo" do Ministério Público e da Justiça são são importantes.

E -- se alguém não entendeu -- diz que os que pedem a intervenção das Forças Armadas, pedem porque consideram que as Forças Armadas são o "reduto" que preservou os "valores".

Ou seja: os que clamam pela intervenção militar não são cavernícolas, são pessoas de valores.

Não perguntaram -- ou não publicaram -- qual a opinião do general sobre a contribuição do golpe de 1964 para garantir esta "identidade forte", este "sentido de projeto", esta "ideologia de desenvolvimento" que ele aclama.

Mas o general fala claramente que a diferença entre 1964 e os dias de hoje, é que agora as instituições estariam funcionando. Como e para quem, sua resposta sobre a Lava Jato já deixou claro.

Agora, se as instituições deixarem de funcionar...

Aliás, sobre 2018 o general achou por bem manifestar sua preocupação com o surgimento de candidaturas "populistas".

Se populistas de direita ou de esquerda, a entrevista não esclarece.

Mas seja como for, é inaceitável que um general na ativa dê opinião sobre supostas candidaturas presidenciais.

As demais respostas que o general dá -- sobre as drogas, sobre as fronteiras, sobre a Colombia e sobre a previdência -- são previsíveis. E vão no mesmo rumo geral das anteriores, com um claro componente corporativista no caso da previdência.

A entrevista como um todo é muito grave.

Que ela tenha sido dada neste momento, em que o governo Temer está sob fogo cerrado, é ainda mais grave. Pois objetivamente joga água no moinho dos que querem uma saída não democrática para a crise.

A esquerda não pode aceitar que um general da ativa intervenha no debate político. Nem deve alimentar ilusões acerca da postura das Forças Armadas. Especialmente num país com a história recente do Brasil.
 
Valter Pomar, foi jornalista no Brasil Agora e na revista Teoria e Debate e Linha Direta antigas publicações ligadas do PT,  ex-dirigente da Secretaria Internacional das Relações Internacionais do PT, doutor em História Econômica, derrotado nas eleições para a direção nacional do PT. Atualmente é secretário-executivo do Foro de São Paulo.
 
SEGUE A CARTA ABERTA AO GENERAL

Carta aberta 

Ao Sr. Eduardo Dias da Costa Villas Bôas

Comandante do Exército

“O melhor do Brasil é seu Povo.

E o pior, é um governo golpista!”                                       

Exmo. Sr. General,

Queremos cumprimentá-lo por sua entrevista, “Somos um país que está a deriva”, concedida ao jornal Valor Econômico e publicada dia 17 de fevereiro/2017.

Alegra-nos sua coragem e discernimento e a postura cívica das Forcas Armadas do Brasil, de respeito à Constituição Federal, nesses tempos em que os três poderes de Estado não hesitaram em desrespeitá-la com o processo de impechment ilegítimo e vergonhoso.

Sua entrevista traz diversos aspectos que merecem atenção de todo povo brasileiro e é com eles que queremos dialogar. Suas declarações, lastreadas pela investidura do cargo que ocupa e em sua vasta experiência pessoal, conhecedor da nossa dura realidade social, adquirem uma importância ainda maior.

  1. Uma crise Profunda. Vivemos um momento complexo, difícil, em que a sociedade brasileira enfrenta uma grave crise econômica, política, social e ambiental.  

É realmente estarrecedor que este grande país, dotado de um povo trabalhador, com invejável conhecimento e capacidade técnica,com riquezas naturais fantásticas e uma estrutura produtiva situada entres as dez primeiras economias do planeta, registre dificuldades para encontrar um rumo emancipatório, soberano e de prosperidade social para toda sua gente, e não apenas para um minoria de 76 mil milionários, entre 204 milhões que vivem do trabalho.

Lamentavelmente os grandes meios de comunicação, um dos principais responsáveis pela crise política que se instalou no país, monopolizados e partidarizados, não se interessaram em informar a população e em repercutir seu grave alerta sobre o rumo do nosso país.

  1. A defesa dos interesses do povo e da soberania nacional. Somamo-nos à sua apreciação, e acreditamos que a mesma é unânime dentro das Forças Armadas, quando afirma que a tarefa da Defesa Nacional não cabe apenas aos militares. Manifestamos, assim, a nossa preocupação com a Defesa Nacional e com a Soberania do Brasil e de nosso povo.

Enxergamos perigos quando projetos estratégicos, gestados à décadas e realizados em parceria com empresas de engenharia nacional, são minados e encontram-se sob intenso bombardeio promovido pelo mesmo grupo politico que açambarcou os poderes do Estado.

Ataques que são incentivados e potencializados pelo oligopólio mediático, que sempre hostilizou as empresas publicas, o Programa Nuclear Brasileiro, a Petrobrás, a Vale do Rio Doce, a Telebrás.

Querem finalizar, agora, o que o antinacional governo de Fernando Henrique Cardoso iniciou na década de 1990.

Nossa maior empresa estatal, a Petrobrás, está sendo esquartejada, suas funções estratégicas estão sendo reduzidas e, até, paralisada em vários de seus projetos indispensáveis à sua sobrevivência e crescimento.

Não é segredo para ninguém que programa do submarino nuclear está em vias de paralisação.Um projeto que atesta nossa capacidade científica e de planejamento estratégico, ameaçado por um governo golpista, antipopular e entreguista.

Também,é motivo de profunda apreensão junto aos movimentos populares, aos sindicatos dos trabalhadores, nos meios intelectuais e estudantis, as informações indicando que está sendo elaborado um acordo que prevê a transferência do controle da Base de Lançamentos de Foguete de Alcântara para o Estados Unidos.

Se tal acordo for aprovado por decisão política desse governo golpista, mais uma vez, estaremos entregando aos interesses estrangeiros as vantagens e privilégios que a natureza legou ao nosso país, como é a localização geográfica da Base de Alcântara.

Pior, anuncia-se que o governo golpista enviara ao congresso nacional Medida provisória autorizando a venda de nossas terras ao capital estrangeiro, e ainda nos ridicularizam ao estabelecer os limites de  até , apenas, 200 mil hectares.   Desafiamos os seus defensores tentarem comprar igual quantidade de terras nos Estados Unidos eou na Europa!

A engenharia nacional está sendo entregue de bandeja aos concorrentes estrangeiros o que, direta e indiretamente,  prejudica projetos essenciais na Indústria de Defesa Brasileira.   Todas essas investidas atendem a interesses de capital estrangeiro e de governos imperiais, como foram claramente revelados e comprovados nas denuncias do Wikileads, sobre a espionagem realizada em nosso país.

Desafiamos a encontrar nos países ditos desenvolvidos a adoção dos mesmos métodos e praticas adotadas aqui para penalizar empresas nacionais envolvidas em processos de corrupção.  

Como movimentos populares e pessoas engajadas de nosso povo não permitiremos que se entregue nossas riquezas, nossas terras e a base de Alcântara, nem a soberania da Petrobras.

  1. A crise política e  a necessária democracia das urnas. Também nos preocupa muito a crise política em que vive o pais, por causa da irresponsabilidade dos partidos políticos derrotados nas ultimas eleições presidenciais.

A democracia, imprescindível para o desenvolvimento político, econômico, social e cultural do nosso país, só pode ser construída pelas urnas, pela participação e pelo respeito à vontade da maioria do povo brasileiro.

O desrespeito com que o Poder Legislativo e setores do Poder Judiciário – inclusive com a conivente omissão do STF (Supremo Tribunal Federal) - trataram a Constituição Federal para que tivesse êxito o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita, pode não ocupar espaços nos noticiários da mídia, também, golpista. 

Mas esse ataque à Democracia e ao Estado de Direito está presente na memória do povo e já faz parte dos anais da história do nosso país.

No futuro a sociedade brasileira será capaz de responsabilizar e punir os protagonistas do crime cometido.

Já, agora, o povo não reconhece no atual governo a legitimidade para construir um novo projeto de país. 

  1. A corrupção é um modo permanente de governar das elites. Toda e qualquer corrupção deve ser combatida e punida, de acordo com nossas leis. No entanto, aqui o combate à corrupção está servindo para atender interesses políticos partidarizados, destruir as empresas nacionais que disputam o mercado internacional e facilitar a ingerência externa em nosso país.

Muitos ministros e parlamentares se notabilizam pelo enriquecimento ilícito, pela desmoralização da política e das instituições do Estado. Estão mais empenhados em não aparecer nas manchetes policiais do que em construir uma Nação e cuidar do bem-estar do povo brasileiro.

  1. O papel das Forças Armadas. Diante desse momento histórico que vivemos, cabe reconhecer e parabenizar as Forças Armadas pela acertada decisão em rejeitar os pedidos, feitos por uma minoria da sociedade brasileira mas amplificados pela mídia golpista,  de intervenção militar na crise  política do país.

Como o Sr menciona na citada entrevista, há a necessidade do Exército participar nos debates dos temas importantes da sociedade brasileira.

Partilhamos de sua visão e preocupação quanto a equivocada decisão política de empregar as Forças Armadas em comunidades carentes, assumindo atribuições de policia ,com o pretexto combater a criminalidade.  Ou para exercer apenas o ridículo papel de policia. 

Os problemas de criminalidade, tem raízes estruturais e sociais e não se resolvem apenas com repressão militar. É preciso medidas políticas que enfrentem os problemas de fundo, que levam a nossa juventude à criminalidade. É preciso combater, estruturalmente, a miséria, a desigualdade social e o desemprego crônico da juventude.

Como o Sr sinaliza, para resolver os problemas fundamentais da sociedade, o emprego das Forças Armadas contra o narcotráfico será sempre ineficiente, contraproducente,  com efeitos temporários e ilusórios. 

O que de fato reduz a captura da juventude pobre pelo narcotráfico e o crime, é a geração massiva de empregos, acesso à educação e condições dignas de vida.

Para isso é preciso a retomada do crescimento, com o indispensável investimento público em obras, como a construção de moradias, hospitais, ferrovias, hidrovias, estradas, saneamento básico, e, fundamentalmente, com uma reforma agrária  que interrompa o êxodo rural e promova um desenvolvimento social e econômico em nosso vasto território nacional.

  1. As raízes da crise do país. No entanto, Sr. General, a crise instalada hoje no país, não tem suas causas restrita às esferas da política e das instituições do Estado.

O monopólio dos meios de comunicação de massas, inexpugnável em nosso país, certamente é um dos fatores, senão o principal, da crise politica existente.

A democracia, e a política, vem sendo sistematicamente vilipendiada para atender e preservar os interesses particulares das famílias que monopolizam a mídia e seus braços político-partidários.

Além disso, meios de comunicação privados de maior alcance, descumprem o previsto na Constituição no que tange a difusão dos valores humanistas e de nacionalidade; não primam pela missão educativa da informação como um bem social; mantem no esquecimento, ou relegada ao silencio, a nossa cultura própria eos personagens relevantes da nossa história; promovem um verdadeiro culto à violência, ao consumismo e a um exacerbado individualismo, promovendo um esgarçamento da vida social.

Precisamos urgentemente rever as diretrizes constitucionais para a concessão publica dos serviços de radiodifusão, democratizando a produção e o acesso à comunicação no Brasil.

Assim, temos vigorosas razões para estarmos preocupados e , também, para entender a gravidade de seu alerta quando afirma que “Somos um país que está à deriva”.

Diante da gravidade da situação e da urgência em encontrar saídas para a crise, é imprescindível a ocorrência de novas eleições gerais no país e as mudanças Constitucionais que assegurem o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Que sabemos, virá, apenas quando instalada uma nova Assembleia Constituinte, eleita sem as influencias do poder econômico e respeitando a verdadeira diversidade e pluralidade existente na sociedade.

Enfim, temos tudo para não estar à deriva.

Queremos construir um novo projeto para o pais, que enfrente a raiz dos problemas e  proponha soluções verdadeiras para os problemas do povo.

Exmo. Sr. General, queremos nos colocar à disposição para debater todos os pontos mencionados em sua entrevista.

Consideramos muito salutar que possamos ter um canal para debater tais temas, principalmente, aqueles que, afetam perigosamente a soberania brasileira e colocam em risco as condições de vida e o futuro de nosso povo.

Assim, receba os cumprimentos pela relevância dos temas abordados e ao apelo à reflexão sobre os graves problemas que nos cercam.

Atenciosamente...

Seguem-se adesões de dirigentes de movimentos populares e intelectuais comprometidos com nosso povo.

  1. Fernando Morais, escritor
  2. Beto Almeida, Jornalista
  3. João Pedro Stedile,  ativista do MST e da Frente Brasil Popular.

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Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins

 
 
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