Primeira mulher a chegar à Presidência em 2010, a vitória de Dilma foi a consagração de Lula e a vitória também do PT
Por Maria Fernanda Arruda – do Rio de Janeiro:
Uma mulher dura e autoritária? Considerada dona de um temperamento explosivo, Dilma é acusada por parte da imprensa de ter destratado companheiros de seu governo, nomeadamente o ministro Paulo Bernardo, na frente dos governadores tucanos José Serra e Aécio Neves. É acusada de “ter feito chorar” o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, depois de uma reprimenda via telefone. Segundo o jornal O Globo, o secretário-executivo do Ministério da Integração Nacional, Luiz Antonio Eira, teria pedido demissão devido a um desentendimento que se sentira humilhado. Construiu-se a imagem de uma mulher dura e autoritária.
Desde logo, sem que se pretendam dissecar boatos e estereótipos, é possível admitir que, disposta a agir, séria e incorruptível, ela tenha dado e dê o devido tratamento aos habitantes do mundo político brasileiro, composto atualmente por homens incompetentes, corruptos, vaidosos. E não será difícil entender a dureza e o autoritarismo como virtudes. De 1952 a 1954, filha de uma família bem-posta na classe média, cursou a pré-escola no colégio Izabela Hendrix e a partir de 1955 iniciou o ensino fundamental no Colégio Nossa Senhora de Sion, em Belo Horizonte. Como adolescente dos anos da euforia de JK e seus 50 anos em 5, namorava e tocava o seu violão. Em 1964 ingressou no Colégio Estadual Central (atual Escola Estadual Governador Milton Campos), na primeira série do clássico (ensino médio). Nessa escola pública o movimento estudantil era ativo, especialmente por conta do recente golpe militar. Foi nessa escola que ficou “bem subversiva” e percebeu que “o mundo não era para debutantes”.
Não teria participado diretamente das ações armadas, mas já era notada por sua atuação política, contatos com sindicatos, aulas de marxismo e responsabilidade pelo jornal O Piquete. Nada excepcional, mas a realidade de uma jovem consciente que não podia aceitar a ordem unida que os militares pretendiam “pagar” à “paisana” mal-educada, corrupta e desprovida de “amor à pátria”. Os jovens não aceitaram. Os intelectuais não aceitaram. Os artistas não aceitaram. Dilma participou de algumas reuniões que resultaram na criação da VAR-Palmares – Vanguarda Revolucionária Palmares. Foi transformada pelos espiões e delatores (premiados com a anistia), gente da Operação Bandeirantes, sustentada pelos empresários da FIESP, em grande líder da organização, ganhando vários epítetos superlativos nos relatórios da repressão, que a definiram como “um dos cérebros” dos esquemas revolucionários. O Promotor de Justiça que denunciou a organização rotulou-a como sendo a “Joana d’Arc da subversão”, por chefiar greves e assessorar assaltos a bancos.
Ao ganhar bem mais tarde a expressão política que a sua competência lhe propiciou, passou a ser acusada como “terrorista” por gente hipocritamente puritana, e que não se sentiu inibida em dar a São Paulo um senador ex-comunista e envolvido em ações terroristas, motorista que teria conduzido involuntariamente Marighela para a morte. Presa numa operação que não a estava procurando, por mero acaso (ao se revistada, estava armada), passou quase três anos em reclusão, de 1970 a 1972, primeiramente pelos militares da Operação Bandeirante (OBAN), no qual sofreu torturas, durante vinte dias, posteriormente pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Dilma denunciou as torturas em processos judiciais e a Comissão Especial de Reparação da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro aprovou pedido de indenização proposto por ela e outras dezoito pessoas. Saiu do Presídio Tiradentes no fim de 1972, dez quilos mais magra e com uma disfunção na tireoide. Havia sido condenada em alguns processos e absolvida noutros. Iniciou a recuperação da sua saúde com sua família, em Minas Gerais. Tempo depois morou com sua tia em São Paulo mudando-se para Porto Alegre mais tarde.
Reconstruiu sua vida no Rio Grande do Sul, junto a Carlos Araújo, seu companheiro por mais de trinta anos. Impedida de retomar seus estudos em Belo Horizonte, Dilma prestou vestibular para economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ficou grávida em 1975 enquanto cursava a graduação e em março de 1976 nasceu sua única filha, Paula Rousseff Araújo. Sua primeira atividade remunerada, após sair da prisão, foi a de estagiária na Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada ao governo do Rio Grande do Sul. Graduou-se em 1977, não tendo participado ativamente do movimento estudantil.
Em novembro de 1977, o nome de Dilma foi divulgado no jornal O Estado de S. Paulo como sendo um dos 97 subversivos infiltrados na máquina pública em uma relação elaborada pelo então demissionário Ministro do Exército, Sílvio Frota, que classificou Dilma como “amasiada com um subversivo”. Com isso, foi exonerada da FEE, sendo, contudo, anistiada mais tarde. Com o fim do bipartidarismo, participou junto com Carlos Araújo dos esforços de Leonel Brizola para a recriação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi membro fundadora do Partido Democrático Trabalhista (PDT) participando de diversas campanhas eleitorais. De 1985 a 1988, durante a gestão de Alceu Collares frente à prefeitura de Porto Alegre, foi Secretária Municipal da Fazenda. De 1991 a 1993 foi Presidente da Fundação de Economia e Estatística e foi Secretária Estadual de Minas e Energia entre os períodos de 1993 a 1994 e de 1999 a 2002, durante o governo de A. Collares e do sucessor Olívio Dutra. A tentativa de reduzir Dilma Rousseff na sua competência foi frustrada, acusada de chegar ao governo Lula sem qualquer experiência política e sem vocação para tanto. Pois viveu desde muito jovem politicamente, não teve e não tem felizmente a vocação da retórica demagógica dos políticos contemporâneos, os que, sem conhecimento de regras básicas da língua, não tem pudor algum em transformar a tribuna do Congresso em palanque para comícios populistas.
Em 2002 participou da equipe que formulou o plano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva para a área energética. No ano anterior havia se filiado ao PT, o que deve ser entendido como decisão de ordem prática, viabilizando sua participação nesse governo, uma vez que sua identificação ideológica a prendeu sempre ao PDT de Leonel Brizola. Com a eleição de Lula, foi escolhida para ocupar o Ministério de Minas e Energia. Ao assumir esse Ministério, também foi nomeada presidente do Conselho de Administração da Petrobras, cargo que exerceu até março de 2010, quando defendeu uma nova política industrial para o governo, fazendo com que as compras de plataformas pela Petrobras tivessem um conteúdo nacional mínimo. Argumentou que não era possível que uma obra de um bilhão de reais não fosse feita no Brasil. As licitações para as plataformas P-51 e P-52 foram, assim, as primeiras no país a exigir um conteúdo nacional mínimo. Sua gestão no ministério foi marcada pelo respeito aos contratos da gestão anterior, como pelos esforços em evitar novo apagão, pela implantação de um modelo elétrico menos concentrado nas mãos do Estado e pela criação do programa Luz Para Todos.
Em 20 de junho de 2005, o presidente Lula indicou Dilma para comandar o Ministério da Casa Civil, com o que ela se tornou a primeira mulher a assumir o cargo na história do país. José Dirceu ocupava até então a pasta e se preparava para ser o sucessor de Lula, um projeto arquitetado durante muitos anos, e que foi desmontado com o chamado “escândalo do mensalão”, de fato o primeiro momento do processo que, muito mais importante do que ter abalado a respeitabilidade do Governo, deu início ao processo de aviltamento da Justiça no Brasil. A nomeação de Dilma descontentou a muitos segmentos do partido, já então sufocado pelo carreirismo mesquinho da facção que o dominou. Mas foi a sua seriedade e competência que restituíram a Lula a autoridade moral necessária ao prosseguimento de seu governo e de sua vida política. Será muito importante para o registro exato na História do Brasil que, em algum momento, os detalhes dessa transição sejam postos à luz do dia.
As relações entre o PT, Lula e as ações do que era então presidente do partido, José Dirceu, foram propositadamente aviltadas por um ministro do STF, competência distorcida e caráter amesquinhado, ao mesmo tempo sendo camufladas pelos envolvidos, que as depositaram em silêncio culposo. Dilma Rousseff teve firmeza de caráter e dignidade que a fizeram não abandonar o seu companheiro e líder, ao mesmo tempo mantendo-se intransigentemente fiel aos seus princípios éticos. Sua postura exigiu sabedoria e competência política que faltam, não apenas aos companheiros de partido, mas, e mais ainda, aos seus opositores. Valerá sempre a pergunta: a quem falta postura politicamente digna: a Dilma Rousseff ou a Fernando Henrique Cardoso? Contrariando os interesseiros que o cercavam e fazendo uso de sua sensibilidade notável, Lula soube, a partir da queda de José Dirceu, como preparar a sua sucessão. Dilma passou a ser considerada por ele como a gestora do do PAC e apresentada ao povo como a “mãe” do programa que marcava a gestão petista.
Em 2010, dentro do que planejara, Lula a apresentou como a sucessora desejada. Dilma se elegeu, não porque Lula elegeria um “boneco”, mas porque o povo brasileiro já sabia haver nela a competência e a seriedade que faltavam às figuras propostas pela oposição do PSDB. A partir desse ponto, chegamos ao presente, que está na memória de todos e é conhecido e vivido por todos os brasileiros.
Primeira mulher a chegar à Presidência em 2010, a vitória de Dilma foi a consagração de Lula e a vitória também do PT. Seu governo teve a grandeza e fidelidade de assegurar a continuidade do que Lula havia iniciado. Se não acrescentou ou aperfeiçoou, não afetou negativamente o trabalho que já vinha sendo feito. Em seu discurso de posse afirmou o seu propósito de ampla reforma tributária e de lutar por uma assembleia nacional constituinte, como pressuposto para a revolução política necessária à instauração no Brasil de uma democracia plena. Ironicamente, aquela que é no mais das vezes posta como abstêmia de vocação política, foi até agora a voz única a clamar no planalto central, propondo a verdade. A reeleição, em 2014, mais do que vitória, teve o sentido de aviso prévio da catástrofe que se aproximava. A vitória, antevista como “favas contadas”, a ser alcançada já em primeiro turno, acabou sendo conseguida dramaticamente, graças, não à comprovada inexistência de virtudes do candidato de oposição, mas favorecido com a morte dramática daquele que o PSDB se preparava para apoiar.
A reação sentimentaloide de grande parte da população avisava de forma gritante sobre a imaturidade política de um povo massacrado pela ditadura civil-militar, acobertada ideologicamente pela Rede Globo de Televisão. A imagem ridícula e opaca da Marina Silva, inviável em qualquer conjuntura política minimamente consciente, foi capaz de comover, desviando votos. A insegurança do terreno em que se pisava não foi sentida, não foi aceita, camuflada por slogans e frases feitas, defeituosas por não corresponderem à verdade. O ano de 2015 caminha para ser o mais nefando já experimentado por esse País. Os objetivos mais sórdidos, assumidos nas caras mais aviltadas pelo vício da mentira, ameaçam depor Dilma Rousseff. Não se trata apenas e tão somente de 54 milhões de votos a serem desprezados. O que se está cometendo é o crime maior, o de substituição da verdade pela mentira tosca e suja, é o aviltamento das instituições. Como respeitar minimamente a Câmara dos Deputados, depois da encenação pornográfica que ofertou em rede nacional de televisão? Como não desprezar um Senado da República que transpira a vilania? A segregação da Política brasileira, isolada pelas paredes dos corredores e gabinetes de Brasília, torna impossível uma previsão sobre o mais provável. Seja o que venha a ser promovido nesse circo de horrores escatológicos, a imagem de Dilma Rousseff está sendo engrandecida. Liberta dos maus conselheiros, que pretenderam afasta-la do contato direito com o povo,e isso é o que ela está fazendo. Um aprendizado de duas mãos: o povo começa a aprender que a Presidenta é digna e o representa dignamente; ela está falando espontaneamente à ele.
A maldade insana dos golpistas vai transformando Dilma Rousseff, não apenas em heroína nacional, mas na santa protetora, a voz de milhões de brasileiros. Dilma declara gostar de história e interessar-se por ópera. No início da década de 1990 matriculou-se no curso de teatro grego do dramaturgo Ivo Bender. A mitologia grega tornou-se uma obsessão para Dilma, que, influenciada por Penélope, resolveu aprender a bordar. Segundo seu site oficial, ela é leitora assídua de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, e Adélia Prado. Ela tem uma bicicleta (anda de “camelo”) em Brasília. Venceu o câncer, venceu definitivamente, quando foi capaz de contar publicamente sobre a tristeza de perder os seus cabelos. O que os sórdidos estão fazendo lesa os interesses do Brasil, destrói muita gente e muitas coisas. Mas não atinge a Dilma Rousseff, que vai se tornando, não pela palavra de Lula, mas pela vontade nacional, a Mãe do Povo Brasileiro.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.