Para a nossa própria história, e do Nordeste do açúcar em especial, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade de escravos assassinados, enquanto a rotina do engenho seguia, tudo isso é tão Brasil, amigos.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Artigo na Folha de São Paulo informa que o Brasil sustentou luxo de escravocratas holandeses, cujos retratos são mostrados em exposição na Holanda. De modo mais específico, aparecem retratos do casal de senhores de escravos no Recife, Marten Soolmans e Oopjen Coppit, pintados por Rembrandt. Mais adiante, continua o texto:Escravos sob o chicote
E como é Brasil, até hoje, a tortura em presos nas delegacias de polícia, nos presídios, como se fossem escravos sob o chicote. É ilustrativa a sobrevivência física e até o elogio, no governo Bolsonaro, a torturadores da ditadura brasileira. Se fosse representada ao nível do real, do histórico, a tortura dos costumes brasileiros daria vômitos pela agonia da dor, ainda que apenas representada. Porque a realidade é ainda mais cruel que o imaginado em representações. Os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos, quando se rebelavam, eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros após o chicote, antes da morte, tinham as feridas abertas lambidas por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi.Descendência de pessoas negras
No Brasil, até hoje vale o que narrei em um personagem, retirado da minha memória: muitas vezes, a descendência de pessoas negras se dá pela mãe. Isso quer dizer, o pai não passa de um elemento fecundador, essa palavra suave, pouco afeita a modos nada corteses. Melhor à maneira mais crua: o pai não passa de um fodedor. É como uma tradição, emprenhar a negra e sumir. Foder a negra, foder muitas vezes a negra, mas, diabo, parece obra do diabo, o bucho da negra cresce. Mais tarde, filhos assim rejeitam esse passado coletivo. Apesar de se moverem em uma sociedade de classes e de preconceito de cor, jamais valorizam o lado paterno, porque para isso teriam de valorizar a gala que partiu. Entre nós, neste dias, ainda perduram denúncias de trabalho escravo ou semiescravo. Entre as empregadas domésticas então, o desconhecimento de direitos elementares como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, sobrevive a qualquer mudança legal. É que continua em vigor o Direito Não-Escrito de Escravos. É histórico no Brasil, é como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes das empregadas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com seus lindos filhos, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados! É justo, não é? A cidadania só alcança os iguais. Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos das empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no WC as empregadas brasileiras não têm sexo.Zumbi
Quando pesquisei para o Dicionário Amoroso do Recife, pude ver que na língua portuguesa o nome Zumbi significa alma que vagueia a horas mortas, ou fantasma de animal morto, ou com o sentido último de ser o título do chefe de um quilombo, zambi. Estranho, não? Ou melhor, faz um sentido histórico, porque alma de assombração ou fantasma de animal morto lembra mais uma vingança póstuma contra um herói na luta contra a escravidão. E quanto ao bairro? O Zumbi, no Recife, foi o Engenho de Ambrósio Machado, lugar de cultivo de cana no trabalho escravo, desde a dominação holandesa. O sociólogo e jornalista José Amaro Correia, amigo já falecido, assim me informou, lembrando o bairro onde ele viveu na infância: “Diziam para as crianças: ‘Zumbi vai te pegar’. O medo que havia nos senhores de engenho foi transferido para os explorados. O explorado repetia à sua maneira a consciência do explorador. Até os meus 14 anos de idade, para mim e para todos os meninos, Zumbi não era coisa boa. Esse nome era associado ao bairro. Para as pessoas de fora, nós dizíamos que morávamos na Madalena. Nos anos 50, ainda falavam para as crianças que Zumbi ia voltar, como se fosse uma ameaça. Era o comentário, era o aviso na infância: ‘Zumbi vai voltar’. As mães do bairro diziam para os filhos: ‘não volte tarde, porque Zumbi pode te pegar’” E assim pude ver a origem histórica do bairro e do seu nome. De lugar de escravos, de terras de senhor de engenho, a lugar onde voltaria Zumbi, desta vez como uma ameaça aos proprietários, e para os descendentes dos explorados, até hoje, como uma assombração, no registro dos dicionários. Que deveria receber um novo significado, que a consciência do novo tempo nos ensina. Deixo a sugestão para atualizar o verbete nos dicionários: Zumbi, substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara coragem, que se levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de novembro, deu origem ao dia da consciência negra. Como bem escreveu Joaquim Nabuco, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Ao que acrescentamos, a característica brasileira mais oculta, como um crime envergonhado que se reflete na cor. Podíamos pelo menos seguir o exemplo da Holanda. Lá, o conhecimento da escravidão brasileira, sem idealizações, vai entrar no currículo das escolas.Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
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