“Sem estratégia só existe a deriva”, escreveu Paul Kennedy, autor de Ascensão e Queda das Grandes Potências. E a deriva é o maior risco para os Estados na arena internacional. Muitas vezes, a ausência de clareza estratégica própria é antessala da captura pela de terceiros
Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo – de São Paulo:
Neste ano, a União Europeia (UE) declarou-se interessada na redefinição de sua estratégia. Em resposta aos crescentes questionamentos à união explicitados na crise grega, no Brexit, nas expressivas votações de partidos assumidamente anti-europeus nas eleições nacionais, no referendo catalão (em boa medida, uma reação à política de austeridade ecoada por Bruxelas), para citar os exemplos mais recentes, há um esforço para se aprofundar a integração.
Ciente de que seu papel tende a diminuir cada vez mais com o deslocamento do eixo de poder para o Pacífico; a Europa empregou seus formuladores na elaboração de uma nova e própria visão em matéria de defesa; algo inédito na história do bloco.
Os avanços na consolidação de uma ordem econômica e jurídica vinculante para o conjunto de seus Estados-membros nunca foram acompanhadospor um processo correlato nas forças armadas nacionais.
Segunda Guerra Mundial
Após o término da Segunda Guerra Mundial, o processo de integração que culminou na UE foi o vetor de um projeto que buscava tanto superar as rivalidades seculares; entre os principais Estados europeus como também consolidar a região dentro da área de influência dos Estados Unidos; como uma barreira eficaz à União Soviética.
Nessa estratégia, não interessava a consolidação de uma força armada comunitária. Os Estados europeus foram agrupados no guarda-chuva da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); hegemonizada pelos EUA e instrumentalizada para seus próprios interesses. A UE nunca teve autonomia em matéria de defesa e, não é demais lembrar; convive com instalações militares norte-americanas em todo seu território.
Brexit
Foi procurando reverter essa situação que a burocracia sediada em Bruxelas divulgou, poucos dias após a aprovação do Brexit; a “Estratégia Global para a Política Comum de Segurança e Defesa da União Europeia”. Esse documento também coincidiu com declaração do presidente norte-americano, Donald Trump, contra os gastos de seu país na manutenção da estrutura da OTAN; cobrando mais responsabilidades dos aliados da margem oeste do Atlântico.
A “Estratégia” apresenta como eixo a necessidade de desenvolver uma política de defesa europeia que independa da OTAN. Busca-se criar uma estrutura de comando militar exclusivamente europeu, bem como fomentar a cooperação militar entre os países membros da União, inclusive no desenvolvimento conjunto e coordenado da indústria de defesa.
O objetivo é, nas palavras ditas em junho deste ano, em Brasília, pelo Tenente-GeneralEsa Pulkkinen, que ocupa a Direção Geral do Estado Maior da União Europeia, obter “autonomia estratégica”.Evidentemente, essa autonomia se dá ante os EUA e sua própria concepção de segurança e defesa. O mesmo oficial mencionou a aspiração por uma “comunidade atlântica mais ampla”, a qual incluiria os americanos do sul.
Claro que, no âmbito da UE,a conversão dos objetivos dessaEstratégia em prática efetiva demandará muito esforço político. É comum a crítica, em matéria de integração regional; segundo a qual seus formuladores são melhores na redação de documentos de alto nível do que na sua implementação.
Estratégia
Contudo, o mero esforço de Bruxelas na formulação de uma estratégia; que a libere da tutela norte-americana no que tange à defesa é por si só indicativo da persistência de uma tendência. Entre nós, brasileiros, iniciativas de igual sentido foram acusadas de “ideologizadas” pelos que deram o golpe em 2016.
Na verdade, tratava-se, como a política externa e de defesa do ciclo progressista antecipou; de uma necessidade para a sobrevivência autônoma no mundo que se abriu na desde a década de 1990.
O cenário internacional
O cenário internacional atual é conturbado. O professor Leonel Itaussu de Almeida Mello alertava para o fato de o mundo de hoje ser muito mais perigoso que o da Guerra Fria, no qual a consolidação de esferas de influência gerava previsibilidade por parte de seus atores principais.Vivemos em um mundo multipolar; em que a disputa pelos espaços de poder leva a uma dinâmica complexa na qual os atores devem cooperar e competir ao mesmo tempo.
O realinhamento em curso ainda não se estabilizou e é provável que muitos conflitos ainda ocorram até que uma nova ordem se estabilize. Um cenário complexo e perigoso para se navegar à deriva.
Estratégia Global
Já ciente disso, desde quase 10 anos antes da Estratégia Global divulgada pela UE; a América do Sultem sua própria versão de “autonomia estratégica”. Em dezembro de 2008, nos marcos da Unasul; foi criado o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), com três objetivos fundamentais: garantir a paz e a estabilidade democrática na região; construir e consolidar uma identidade propriamente sul-americana em matéria de defesa; fortalecendo a integração; e promover o debate aberto entre os Estados membros e a chegada a soluções consensuais que aprofundem a cooperação.
O Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED) e a Escola Sul-Americana de Defesa (ESUDE), instituições de pesquisa e ensino criadas em apoio ao CDS, avançam no sentido na consolidação de uma identidade regional.
Os dois eixos tácitos (embora não explicitados) da opção daquela América do Sul de 2008; por um pensamento estratégico próprio eram a superação das rivalidades e conflitos regionais e a ruptura com a concepção hemisférica de defesa.
Por um lado, já se sabia que nossa divisão, em que pese todas as diferenças que temos no interior da região; é a primeira linha de defesa dos interesses de terceiros. Por outro lado, a ideia de um “hemisfério ocidental” com uma identidade geopolítica comum é própria da estratégia norte-americana; e obstáculo a uma visão que prescinda dos EUA(aliás; sua assimilação acrítica por nossas academias é, ela sim, uma vanguarda do nosso atraso).
O CDS
O CDS produzia e produz soluções próprias a nossos problemas de segurança e defesa sem passar pelo beneplácito de Washington. Não é pouco, mesmo não sendo uma aliança militar convencional.
É seguindo o exemplo da América do Sul que a Europa afirma hoje, oficialmente, sua disposição em buscar “autonomia estratégica”. Como já sabiam os formuladores “ideologizados”, “esquerdistas” ou “bolivarianos”, a construção de um caminho próprio é a resposta necessária para quaisquer Estados que pretendam resguardar-se em um mundo que tende a convulsionar-se cada vez mais.A onda conservadora que atravessa o continente procura atacar as balizas dessecaminho próprio, condenando-nos à deriva. A lembrança dos enormes riscos implicados é a lição que a “Estratégia Global” europeia nos traz agora.
Alexandre Ganan de Brites Figueiredo, é dvogado, bacharel em História e doutor em Integração da América Latina pelo PROLAM (Program de pós-graduação em Integração da América Latina) da Universidade de São Paulo (USP).