No dia 17 de junho de 1822, pouco antes da Independência do Brasil, um ex-escravo, Denmark Vesey, que havia comprado sua liberdade ao ganhar dinheiro em uma loteria, chefiou uma rebelião de negros contra a minoria branca em Charleston, no estado da Carolina do Sul.
Sim, minoria branca. Naquele ano, mais negros do que brancos viviam na Carolina do Sul, mas os brancos, donos de extensas propriedades rurais, tinhamn o poder nas mãos: as armas, a polícia, o Exército, o governo.
Um dos negros, Denmark Vesey, carpinteiro e pastor leigo de uma Igreja Prebisteriana negra, a Emmanuel Church, liderou uma rebelião de escravos, com o intuito de chegar ao porto, apossar-se de navios e zarpar para o Haiti, que tinha se tornado uma República Negra, depois de se tornar independente da França.
Alguns negros, talvez por medo, delataram a rebelião antes que ela se iniciasse ao primeiro minuto de 17 de junho. Denmark Vesey e dezenas de seus cúmplices foram enforcados, muitos outros negros sentenciados a longas penas.
Incendiada ou destruída mais de uma vez por brancos, a Emmanuel Church foi finamente reconstruída em definitivo na década de 1880.
Ela é a mais histórica igreja negra dos Estados Unidos e nela importantes líderes, como Martin Luther King Jr., discursaram.
Há ainda o interessante detalhe de que ela se situa em pleno centro de Charleston, que é até hoje ocupado por mansões de ricas famílias brancas, descendentes dos antigos donos de escravos.
A Carolina do Sul é também um estado que até hoje faz tremular em seus mastros a bandeira da Confederação – a bandeira do poder branco e separatista do sul dos Estados Unidos, cujas tropas foram derrotadas pelas tropas da União, do governo federal chefiado por Abraham Lincoln.
É impossível começar a entender o atentado deste 17 de junho em Charleston sem entender também que até hoje muitos brancos no sul dos Estados Unidos não se conformam com a derrota da Confederação. Eles são racistas, pertencem a grupos de “superioridade branca” e querem se separar do resto do país.
Dylann Storm Roof, de 21 anos, o confesso assassino, é um produto deste meio.
Será simples coincidência que ele escolheu um 17 de junho – a mesma data da frustrada revolta de Denmark Vesey – para assassinar nove negros durante um “Estudo da Bíblia” na Emmanuel Church?
Durante décadas os cristãos brancos da Carolina do Sl não permitiam a existência de “igrejas negras”. Eles exigiam que uma maioria dos participantes fosse de brancos, para a Igreja poder funcionar.
Os pastores brancos ensinavam que a escravidão dos negros havia sido determinada por Deus e que os negros deveriam se conformar com sua sorte.
Hoje, as igrejas negras funcionam, mas a mentalidade de muitos cristãos brancos em estados do sul dos Estados Unidos – como as duas Carolinas, Mississippi, Alabama – não mudou muito.
Esta semana, alguns dias antes do massacre em Charleston, um artigo “op-ed” no New York Times revelava algo muito interessante: embora os americanos tenham medo do “terrorismo islâmico”, a grande maioria de atentados terroristas nos Estados Unidos é praticada por grupos de “superioridade branca” – esmagadoramente constituídos por cristãos.
Grupos que defendem ferozmente o direito de portar armas de fogo.
São pessoas como Dylann Storm Roof, que posava em sua página no Facebook com um casaco exibindo as bandeiras dos regimes de “apartheid” na África do Sul e na antiga Rodésia (hoje Zimbabwe).
Este é um terrorismo irracional, como os outros terrorismos. A única diferença é que a maioria da imprensa americana não tem a coragem de chamá-lo por seu nome próprio.
José Inácio Werneck, jornalista e escritor, trabalhou no Jornal do Brasil e na BBC, em Londres. Colaborou com jornais brasileiros e estrangeiros. Cobriu Jogos Olímpicos e Copas do Mundo no exterior. Foi locutor, comentarista, colunista e supervisor da ESPN Internacional e ESPN do Brasil. Colabora com a Gazeta Esportiva. Escreveu Com Esperança no Coração sobre emigrantes brasileiros nos EUA e Sabor de Mar. É intérprete judicial em Bristol, no Connecticut, EUA, onde vive.
Direto da Redação é um fórum de debates, editado pelo jornalista Rui Martins.