De repente, quando vou saindo, uma senhora com uma cabecinha toda branca, veio até perto de mim e começou a falar de coisas que eu não entendia bem, mas que me pareciam ter sabor de pão com açúcar, do tempo da infância no beco.
Por Urariano Mota – de São Paulo
Eu jamais pensei em reencontrar o que parecia definitivamente perdido.Luz da estrela distante
Então a senhora Eulália me explicou, quero dizer, ela deu início a um primeiro movimento para a luz da estrela distante, mas primeiro em uma superfície, onde estava uma inscrição de hieróglifos que remetiam a realidades além dos sinais escritos. Então, a bela senhora Eulália, Euzinha, me explicou didática a primavera, a primeva e primeira luz. Eulália estava de óculos escuros, num contraste bonito da sua cabeça inteira branca, mas era um branco que mais falava da infância que da velhice. Eulália me conhecia desde os distantes primeiros anos no beco, ali por volta dos meus 6 anos de idade. No cemitério, e somente ali, à sombra das árvores frondosas do cemitério de Santo Amaro no Recife, em frente aos túmulos, Eulália me contou, contou mesmo, antes de contar, que me ensinara as primitivas noções de contar com os dedos. Assim, na infância, ela me falou em um tempo quase esquecido: – Quantos dedos você tem? – Hem? Eu não sei – eu lhe respondera. – Vamos: um, dois, três, quatro, cinco. – Um, dois, três, quatro, cinco. Cinco! – E nas duas mãos? – Hem? Sei não. – Vamos, continue: seis, sete, oito, nove, dez. – Seis, sete, oito, nove, dez. Dez! Isso Eulália me lembrou no cemitério, depois de 55 anos! Então comecei a lembrá-la. Quero dizer, eu não lembrava da sua figura de mocinha de 18 anos, pois agora ela estava diante de mim aos 74 anos. Mas eu lembrava perfeitamente do espanto que ela me dera ao me ensinar a contar na forma primitiva do contar. E por isso, mais que voltar à primeira lição básica, eu desejei mais: eu queria saber da minha mãe, que falecera em dezembro de 1958. Euzinha a conhecera?Rosto de Eulália
Ah! Uma sombra de nuvem correu sobre o meu rosto, lá na idade do cemitério, porque vi a sombra de uma nuvem na tarde passando também pelo rosto de Eulália, a senhora de cabeça toda branca que me abraçava, quando eu próprio estava como se usasse uma peruca de cabelos grisalhos. Ela me disse: – Criança. Você tem o mesmo rosto de criança. Mas eu queria saber a lembrança que ela possuía da minha mãe. E a senhora Eulália não me desencantou: – Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhinhos negros, muito vivos. Para mim, ela era uma boneca índia. – Boneca índia? – Sim. Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos. Eu não chorei no cemitério, eu sorri, que era maneira de me comover, de me encantar sem lágrimas com a revelação daquela memória. Eulália me acariciou o rosto e cravou, como as pessoas do povo cravam, porque delas é a palavra definitiva: – Você é a mesma criança. Eu não acredito em Deus. Mas acredito muito na coincidência humana cujo nome é Eulália Pessoa Bezerra. Um beijo pra você, Euzinha.Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil