Evangelismo lançou o Brasil numa nova Idade Média

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Publicado Sábado, 26 de Dezembro de 2020 às 11:38, por: CdB

Sem dúvida, este ano marcou o fim da hegemonia político-religosa da Igreja Católica no Brasil, suplantada pelo advento do fenômeno político-religioso do Evangelismo populista, uma simplificação e deturpação das denominações protestantes originárias da Reforma.  Os chamados pastores evangélicos, geralmente sem qualquer formação teológica, conseguiram misturar numa única seita, de inspiração bíblica, num bem proporcionado sincretismo, muitas das crendices populares pagãs brasileiras com supertições vindas do catolicismo e espíritismo numa nova religião de sucesso.

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Texto mais lido no Observatório da Imprensa mostra o perigo do fim da laicidade no Brasil
Essa nova pregação bíblica superou as expecttivas de seus próprios criadores e se transformou no fenômeno político-social do Brasil de hoje. O desvio religioso com a utilização da ingenuidade e ignorância dss pessoas já inspirou temas de filmes e romances. Foi o caso do filme Elmer Gantry,  de Richard Brooks, com Burt Lancaster no papel do pastor charlatão pregador, baseado num  romance de Sinclair Lewis, inspirado na vida da pregadora canadense criadora  da Igreja Pentecostal.  O livro Silas Marner, do inglês George Eliot, começa também com a desilusão do personagem principal, um seguidor  de uma seita evangélica. Talvez eu tenha sido ou seja ainda o primeiro ou o principal denunciador desse perigo, que já se implanta no governo e começa a mudar leis e acabar com nosso Estado laíco. Por isso, decidi incluir neste Direto da Redação de fim de ano, este texto Evangelismo lançou o Brasil numa nova Idade Média, texto mais lido neste ano de 2020, no site do Observatório da Imprensa. Segue a transcrição do texto, publicado em 24 de março de 2020: EVANGELISMO LANÇOU O BRASIL NUMA NOVA IDADE MÉDIA Elmer Gantry poster.jpg Ao contrário de todos os cientistas do mundo, alguns pastores evangélicos, entre eles Silas Malafaia e Edir Macedo, garantem não haver nenhum risco de transmissão do coronavírus nos seus templos, durante as pregações bíblicas, cantos de hinos religiosos e testemunhos de fé. Como ninguém irá conferir os nomes dos mortos ou das pessoas internadas por coronavírus com os dos membros dessas igrejas evangélicas, o risco de um desmentido é remoto. Como se não bastasse essa afirmação mentirosa, a Justiça também parece compartilhar dessa crença e oferece sua ajuda. Foi assim que, na semana passada, contra tudo e contra todos, um juiz do Rio de Janeiro decidiu ignorar a recomendação de confinamento da Organização Mundial da Saúde e de todos os países do mundo. O pastor evangélico Malafaia tinha sido autorizado pelo juiz, contra decisão do governador do Rio de Janeiro, a continuar reunindo os fiéis em suas igrejas, certo de que Deus os protegeria do coronavírus. Diante da má repercussão dessa vitória judicial, foi o próprio pastor quem recuou, afirmando ficarem abertos os templos, mas sem realização de cultos coletivos. O episódio mostra que o Brasil descobriu a máquina do tempo e decidiu retornar à Idade Média. O recuo do pastor Malafaia evitou um certo caos, pois a exceção jurídica brasileira iria incentivar outras igrejas, não só evangélicas, a desejar se beneficiar da mesma decisão judicial para suas comunidades terem livre ingresso em seus templos e cultos, missas e sessões. Sem medo do vírus, porque seriam protegidas por Deus, dentro das mesmas crendices medievalescas com resultado danoso para a Europa, cuja população morria como moscas mesmo com o uso de água benta. E, nessa altura, qual deverá ser a nossa atitude? De um lado, um presidente que convocou o povo para se manifestar nas ruas com o risco de contrair coronavírus, cuja irresponsabilidade justifica um impeachment. E agora, na sequência, um pastor pretensamente protegido por Deus, que insistia em reunir seu rebanho de fiéis incautos em cultos de centenas de pessoas, entre as quais haveria contaminados pelo vírus, sujeitos a internação e mesmo com risco de morte. Nos dois casos, é inquietante a irresponsabilidade. Ambos seriam punidos em qualquer outro país. O fanatismo dos evangélicos O Brasil vive hoje em plena Idade Média. Piores do que o coronavírus são a ignorância, o cheiro fétido do beatismo, o charlatanismo e a enganação pregada e propagada pelos chamados pastores evangélicos. Uma versão moderna de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que deixaria apoplético Glauber Rocha – o ranço imanente dessa versão bíblica evangélica tirada dos porões do Mayflower, trazida ao Brasil e implantada à força de cantos e gritos histéricos na nossa cultura. Deus acima de tudo – acima da ciência, da inteligência, da lógica, do saber, da literatura, da história. Mas que Deus? O Deus das fogueiras da Idade Média, das inquisições, das teorias imbecis, do céu, da salvação das almas e do medo do inferno. O Deus dos espertos que se aproveitam dos ignorantes, dos simples e pobres de espírito. Nas análises do Brasil de hoje de Bolsonaro (econômicas, sociais, políticas e outras tantas), falta este ângulo resultante da nefasta influência evangélica – o de um Brasil destruído pela crendice bíblica, pela mentira levada ao povo e pelas ações dos vendilhões do templo. Enquanto o mundo inteiro se preparava para enfrentar esse novo vírus, capaz de relançar o clima de medo, da morte e da peste que enlutou a Europa durante 400 anos anos, um presidente cego ria do perigo, no qual lançava seus fanáticos seguidores. Quatro dias depois, o mesmo presidente – apostando na idiotice desses seguidores desmemoriados – reapareceu de máscara mal colocada no rosto, reconhecendo o risco do vírus. Tarde demais: no domingo em que a irresponsabilidade do presidente levou às ruas cegos seguidores em mais de 200 cidades, num fenômeno de infecção coletiva, milhares contraíram o vírus do qual desdenhavam e em cuja existência não acreditavam. Logo veremos as dramáticas consequências. Um presidente que expõe sua gente ao risco de morte não é digno do cargo e está merecendo um impeachment imediato por motivo de saúde pública. Porém, isso dificilmente ocorrerá. Em torno dele, protegendo-o, estão os sacerdotes da mentira e da morte, iguais àqueles vestidos de preto e cheirando enxofre da Idade Média; aproveitando-se do nome de Cristo, eles continuarão suas rendosas pregações. Seus pobres fiéis explorados não percebem, mas seus pastores são, sem dúvida, as Bestas do Apocalipse. Enquanto o planeta (ou será que a Terra é plana, como diz o guru do presidente?) pede para todos evitarem sair às ruas para se proteger contra a nova peste, Silas Malafaia, o nome de um deles, reagiu contra a exigência de as igrejas fecharem suas portas para evitar aglomerações. Finalmente aceitou cancelar os cultos, mas as igrejas permanecerão abertas, prestando assistência religiosa individual.. Malafaia deve ter uma oração secreta contra o coronavírus, enviada por Satanás, se não for ele próprio o Capeta… E o autoproclamado bispo Edir Macedo é outro que desdenha do risco mortal do vírus. O grande antídoto contra todos os vírus seriam a Bíblia e o Evangelho, versão Igreja Universal, exatamente como diziam os sacerdotes na época da peste negra, faz sete séculos; eram os anunciadores da morte. Ora, essa mesma Bíblia, no Livro das Revelações, ou Apocalipse, tem um versículo destinado a todos quantos se enriquecem e enganam o povo com religiões: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas” (Apocalipse 18:4). Sou ateu, creio na capacidade do homem para vencer obstáculos como os vírus e vencer principalmente os enganadores que se aproveitam da ignorância para lançar seu manto de trevas, como na Idade Média. *** Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

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