Um ano depois da posse, o governo Lula é um triunfo espetacular do neoliberalismo, o maior desde a virada argentina de 1989, quando Menem, eleito pelo peronismo, iniciou as “relações carnais” com os EUA e com o grande capital.
O governo Lula manteve a política econômica dos últimos anos de Fernando Henrique e Malan, com resultados semelhantes. A preservação dos ganhos excepcionais dos credores do Estado, dos bancos e do grande capital se fez à custa de estagnação econômica, queda do emprego e da renda dos trabalhadores, corte dos gastos sociais, aumento da dívida pública.
A adesão do governo Lula e de seu governo ao neoliberalismo não se resume à continuidade da política econômica, sua face mais visível. Envolve questões mais profundas e mais duradouras, envolve a essência da ideologia neoliberal. O neoliberalismo não é um conjunto específico de políticas macroeconômicas, nem sua superação dependerá seja de uma simples substituição da dupla Palocci-Meirelles seja de uma mudança nos rumos que eles mesmos possam realizar a partir de um agravamento do quadro internacional, por exemplo, ou de alguma pressão do próprio Planalto, por cálculo eleitoral.
O principal argumento para as políticas continuístas de Palocci-Meirelles era a gravidade do quadro econômico, mas o governo foi bem mais além: encaminhou reformas institucionais de inspiração neoliberal; nomeou economistas afinados com o neoliberalismo norte-americano para posições estratégicas não só do Ministério da Fazenda, mas também dos ministérios responsáveis pelas políticas sociais; afinou seu discurso e sua imagem pelos valores neoliberais, em detrimento dos valores da esquerda. Nada disso era requerido pela situação econômica de curto prazo.
O neoliberalismo estava na defensiva no continente desde a catástrofe argentina de 2001 e as péssimas conseqüências sociais e econômicas. Muitos paradigmas neoliberais vinham sendo criticados em escala mundial, com a desmoralização de valores e instituições que se seguiu aos grandes desastres financeiros nos EUA em 2001-2002. Surgiram fraturas importantes no seu próprio campo e alcançaram grande repercussão as fortes críticas do economista Joseph Stiglitz ao FMI e ao Banco Mundial. A adesão de Lula e do PT é um tremendo contraponto ao que parecia ser um declínio progressivo da sufocante hegemonia dos dogmas neoliberais e ameaça recolocá-los na mesma posição de força anterior.
O que pensar de tudo isso e o que fazer são duas questões complexas e difíceis para quem optou por resistir à maré montante neoliberal e continuar na esquerda. Este texto entra no debate da primeira para melhor refletir sobre a segunda, a mais difícil. Apresenta quatro seções: a primeira retoma o conceito de neoliberalismo, ao qual Lula aderiu de forma ampla, e não apenas por problemas econômicos conjunturais, o que se discute na segunda seção; a terceira apresenta o predomínio dos valores neoliberais na retórica e na imagem do governo e a última apresenta elementos para a discussão dos desafios e as alternativas colocadas para a esquerda no Brasil a partir da grande virada do PT.
1. O neoliberalismo é muito mais que uma política econômica
O neoliberalismo é um conjunto de idéias e valores bem mais amplo que as políticas econômicas que nele se referenciam e não apresenta um conjunto rígido e bem definido de políticas a serem aplicadas. Nos governos ditos neoliberais verifica-se grande variedade de políticas econômicas específicas, inclusive coexistindo no mesmo período.
Nos principais países da América Latina, por exemplo, houve quase todos os tipos possíveis de políticas cambiais nos últimos anos: câmbio flutuante “sujo”, com foco no câmbio real e controle de capitais de curto prazo no Chile, currency board rígido na Argentina de 1991 a 2001, câmbio deslizante com desvalorizações prefixadas no Brasil de 1995 a 1998 e no México de 1988 a 1994, câmbio flutuante “sujo” no México a partir de 1995 e no Brasil a