Militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), Zé Carlos já havia sido preso durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em 1968, quando passou 8 meses nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), de Belo Horizonte.
Por Redação, com ABr – de Brasília
Há exatos 50 anos, a ditadura militar assassinava José Carlos da Mata Machado, o Zé Carlos, jovem estudante de Direito que lutava contra o regime. Torturado e assassinado em Recife, seu corpo foi enviado à família, em Minas Gerais, após denúncias e repercussão do caso. Ele foi uma das poucas vítimas da ditadura que pode ser enterrada por familiares.
– Eu só me lembro da gente caminhando no Cemitério da Colina, em Belo Horizonte, até a direção da cova, e um batalhão de fotógrafos nos fotografando. Pouquíssima gente foi, porque todo mundo tinha medo nessa época. Foi o período mais terrível, foi o governo Garrastazu Médici – contou seu irmão Bernardo Mata Machado, 70 anos de idade, em entrevista à Agência Brasil.
Bernardo refere-se ao irmão como “um homem com muita coragem e que tinha dois princípios básicos na vida, liberdade e igualdade”.
– É doloroso até hoje, mas ao mesmo tempo a gente tem uma admiração muito grande por ele. Então, tem um aspecto que é doloroso, mas tem outro aspecto que é glorioso – disse.
Segundo Bernardo, o princípio liberdade se referia à luta contra uma ditadura militar e a igualdade sobre a esperança de construção de uma nova sociedade onde houvesse menos exploração.
Militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), Zé Carlos já havia sido preso durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em 1968, quando passou 8 meses nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), de Belo Horizonte. O jovem chegou a ocupar a vice-presidência da UNE, após ser presidente do Centro Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que ingressou em 1964 como primeiro colocado no vestibular.
O corpo chegou a ser enterrado em Recife, onde ele foi torturado e morto em 28 de outubro de 1973, no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), mas foi exumado e levado a Belo Horizonte, devido ao esforço da família e da advogada Mércia Albuquerque Ferreira, que já morreu, mas registrou em diário detalhes da exumação que acompanhou na época.
– Meu pai foi jornalista na juventude, professor de Direito; meu pai pegou o telefone e denunciou internacionalmente a morte dele aos jornais Washington Post, New York Times, e o senador Edward Kennedy denunciou na tribuna do Senado dos Estados Unidos as torturas no Brasil, e aí os militares não tiveram como não nos entregar o corpo dele – relata a advogada no diário.
O pai de Zé Carlos era Edgar Godoy da Mata Machado, deputado federal cassado na ditadura e senador na década de 1990.
Bernardo lembra que o corpo veio de Recife de avião, com autorização das Forças Armadas, em caixão lacrado, com proibição de abrir o caixão pelos militares. O enterro na capital mineira ocorreu em 15 de novembro. Após ter contato com os relatos da advogada Mércia, que teve os seus diários publicados, e que traziam informações sobre a exumação do corpo de Zé Carlos, o irmão compreendeu a determinação dos militares.
– Depois dessa luta para conseguir, exumou o corpo, e a descrição que ela faz do corpo eu não vou ler para você porque é insuportável de ouvir, mas ela usou um termo que já basta: o corpo era um verdadeiro patê, estava escalpelado. Ou seja, eles tentaram esconder a identidade dele, além de torturado, arrebentaram com o corpo dele, com todos os dentes. Em suma, não é à toa que eles proibiram que a gente abrisse o caixão – relatou.
Na época, os familiares souberam da morte após uma nota oficial ser transmitida na televisão. A versão oficial da ditadura militar, veiculada nos jornais da época, apontava que a morte seria resultado de um tiroteio entre colegas de militância.
– Hoje a gente já tem depoimentos de um preso político. (Zé) foi colocado na cela, com ele já quase à morte, em que ele disse as últimas palavras: eu sou Zé Carlos Mata Machado, sou militante de Ação Popular, digam aos meus companheiros que eu não falei nada. E morreu. Isso foi testemunhado – contou seu irmão.
O término do regime militar não significou o fim das ameaças e das tentativas de golpe à democracia brasileira, segundo avaliação de especialistas ouvidos pela Agência Brasil.
– Essas tentativas de golpe (nos dias de hoje), têm se dado menos pela força bruta, pelos tanques nas ruas, do que pela manipulação de instituições, como a Justiça, por exemplo, que, em alguns momentos, acabou sendo politizada e utilizada como instrumento contra adversários – disse do cientista político e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa Insper Carlos Melo.
Para a coordenadora de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Gabrielle Abreu, a defesa da democracia é a defesa da cidadania plena, da participação determinante de todas as pessoas nos rumos políticos do país.
– Quando esses direitos não são garantidos, a gente vive uma democracia fragilizada, que é o atual contexto. Na verdade, o contexto de muitos anos, desde o processo de redemocratização do país, em que não foi encaminhada uma política reparatória às vítimas, nem de responsabilização e punição dos perpetradores dos crimes.
A trajetória do militante Zé Carlos foi relatada em livro do jornalista Samarone Lima, que foi ponto de partida para o filme Zé, do cineasta Rafael Conde. Exibido nos festivais de Curitiba e Ouro Preto e no CineBH, o longa-metragem narra os últimos anos da vida de Zé Carlos e foi exibido neste sábado, às 10h30, no Cine Santa Tereza, em Belo Horizonte. A sessão faz parte da Semana Zé, organizada para lembrar os 50 anos da morte do militante.