A inverdade do PT sobre desigualdade no Brasil

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Publicado Terça, 12 de Setembro de 2017 às 12:00, por: CdB

Um estudo aprofundado sobre a distribuição das rendas na população brasileira, divulgado há um ano, na Conjuntura Brasil, da Fundação João Mangabeira, mostra ter sido aparente e meramente publicitária a diminuição da desigualdade econômica e social no Brasil. Dada sua importância, o Direto da Redação reproduz esse documento. Nota do Editor, Rui Martins.

Por Cesar Benjamin, do Rio de Janeiro:

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O Brasil é um país extremamente desigual que pouco mudou com os governos petistas

Estudos recentes, que usam o banco de dados da Receita Federal, mostram que a renda brasileira permaneceu extremamente concentrada nos últimos quinze anos. A distribuição foi quase residual. o Brasil permanece onde sempre esteve, no grupo dos países mais desiguais do mundo.

Ao contrário do que dizia a propaganda oficial (dos governos Lula e Dilma), não houve alteração significativa no perfil da distribuição de renda no Brasil na última década. Desde 2013, os pequenos ganhos começaram a ser revertidos. Tudo indica que o ciclo de distribuição sem reformas foi curto e superficial, incapaz de produzir ganhos significativos e permanentes. A renda continua concentrada no topo da escala, onde está o pequeno grupo dos mais ricos.

O Brasil sempre esteve no grupo dos países que têm a renda mais concentrada no mundo, disputando com alguns países africanos e latino-americanos os últimos lugares nas classificações internacionais. Nossa trajetória histórica é bastante estável a respeito disso, mas com inflexões. Entre 1946 e 1963 houve a mais expressiva e mais longa redução da desigualdade já registrada entre nós. O golpe militar de 1964 a interrompeu, dando início a um período de reconcentração.

Essa tendência perdurou até 1992, quando os efeitos da Constituição de 1988 começaram a se fazer sentir. Nesse ano iniciamos uma nova trajetória de melhora que, em diferentes ritmos, durou até 2013. Terminou então esse ciclo recente, que podemos chamar de distribuição sem reformas. A reversão de 2013 não foi logo percebida porque os dados estatísticos mostravam que a baixa classe média continuava crescendo. Nesse ano, porém, ela já não crescia por absorver grupos em ascensão. Ao contrário. Pessoas antes posicionadas em estratos superiores estavam caindo.

Ou seja, a baixa classe média ainda crescia em 2013 porque a média classe média diminuía (Figura 1).1 A estagnação econômica de 2014 e a forte recessão que começou em 2015 estão acelerando o empobrecimento da população e a concentração da renda nacional. Em vez de ganhos estruturais e permanentes, os governos do PT produziram uma distribuição tímida e facilmente reversível, incapaz de retirar o país da sua posição tradicional.

A desigualdade existente no Brasil é incompatível com o grau de modernização que nossa sociedade já atingiu. Além de grande, ela é resiliente, seja qual for a metodologia adotada para estudá-la. A base de dados mais tradicional são as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), do IBGE, bastante sérias, mas portadoras de uma grande limitação: as entrevistas domiciliares praticamente só recolhem informações sobre salários, aposentadorias e pensões, deixando de fora lucros, dividendos e outros ganhos de capital, heranças, rendas resultantes de patrimônio, investimentos financeiros e atividades afins, que nunca são citados.

Os dados das PNADs mostram, basicamente, o que ocorre no mundo do trabalho. Ao subestimarem grandemente as rendas mais altas, essas pesquisas não conseguem captar o comportamento da desigualdade como um todo. Pois em um país com renda muito concentrada, como o Brasil, o que determina as variações na desigualdade é o comportamento do topo da escala, onde está a maior parte da renda nacional.

A desigualdade que existe dentro dos 90% que são pobres ou remediados tem pouca influência no resultado geral. Por isso as PNADs não são o instrumento adequado para medir a chamada distribuição funcional da renda, que separa trabalho e capital.

Nos últimos anos começaram a surgir trabalhos, ainda pouco divulgados, que se baseiam no banco de dados da Receita Federal.

Eles partem das declarações de imposto de renda de pessoas físicas, uma fonte que não registra os rendimentos dos mais pobres, que são isentos, mas capta de modo mais confiável os rendimentos dos mais ricos. Contrariando as expectativas, esses trabalhos revelam duas coisas: (a) na melhor das hipóteses, a distribuição da renda permaneceu estável durante a última década (Figura 2); (b) a concentração no topo da escala é substancialmente maior do que se pensava, pois justamente ali ela se acelera (Figura 3).

A partir desses resultados, começa a se formar um novo consenso: as pesquisas domiciliares indicaram corretamente melhoras na base da pirâmide social, provavelmente como efeito da maior geração de empregos formais e dos aumentos reais do salário mínimo, que é o indexador dos benefícios do sistema de Seguridade Social (Figura 4).

Mas isso não foi suficiente para alterar a desigualdade total. Houve mobilidade social entre os mais pobres, chegando até a baixa classe média, mas a partir desse patamar o movimento arrefeceu consideravelmente. Cresceu a concentração no topo – algo que as PNADs não captam –, pois os ricos continuaram a se apropriar da maior parte do crescimento da renda nacional.

Por isso a desigualdade de renda, vista como um todo, não diminuiu e pode até mesmo ter aumentado. As pesquisas que usam os dados tributários mostram que a razão entre a renda do grupo 1% mais rico e o PIB voltou a crescer a partir de 2006.

As diferenças que se obtêm a partir de dados tributários e de pesquisas domiciliares tornam-se gigantescas quando se observam esse grupo dos 1% mais ricos e os subgrupos que se podem formar dentro dele.

Em 2013, 71 mil pessoas, que correspondiam a 0,3% dos declarantes de imposto de renda e a 0,05% da população economicamente ativa, dispunham de 14% da renda total e de 22,7% de toda a riqueza declarada à Receita Federal na forma de bens e ativos financeiros.3

Paradoxalmente, esse ínfimo grupo social paga menos impostos, proporcionalmente, do que todos os demais. Os dados tributários não mostram nenhuma alteração clara no perfil da distribuição de renda no Brasil nos últimos quinze anos. Os coeficientes de Gini calculados a partir deles são bem maiores e mais estáveis que os calculados a partir das PNADs: 0,696 em 2006, 0,698 em 2009 e 0,688 em 2012 – níveis altíssimos –, apresentando uma variação para cima e para baixo inferior a 1%, sem tendência clara.4

Esse coeficiente, como se sabe, varia de zero (distribuição perfeita da renda) a um (concentração máxima), de modo que quanto maior, mais desigual é o país.

Para reforçar a percepção de que nada de excepcional aconteceu no Brasil neste início do século XXI, basta constatar que nossa posição relativa no mundo quase não mudou.

O aumento dos gastos sociais e a queda na desigualdade, medida por pesquisas domiciliares, foram fenômenos generalizados na América Latina, graças à conjuntura internacional favorável aos países produtores de commodities, o que afrouxou as restrições nas contas externas e permitiu a ampliação das despesas públicas.

O Panorama Social de America Latina, da Cepal, reforça a ideia de que o Brasil não teve uma trajetória específica ao mostrar que o ciclo de queda da pobreza em todo o continente terminou em 2014, junto do nosso, mantendo a desigualdade em um nível muito alto.6 Também no ranking mundial dos países mais desiguais o Brasil quase não se moveu, deslocando-se da quarta para a quinta posição.

A sensação generalizada de que a distribuição de renda teve um salto de qualidade nos governos do PT nasce de três fatores:

a. a maior formalização nas relações de trabalho, com os assalariados com carteira passando de 40% para 52% da população economicamente ativa; a carteira assinada traz consigo uma série de benefícios e o reconhecimento oficial de uma renda;

b. a expansão do crédito, que também é potencializado pela carteira assinada e aumenta enormemente o poder de compra no curto prazo;

c. a apreciação do real diante do dólar.

Essa apreciação, como se sabe, é nociva à economia do país, pois deprime o investimento. Mas, ao mesmo tempo, barateia os produtos importados. Cotados em dólar, os salários brasileiros deram um salto impressionante entre 2002 e 2014. Como grande parte dos eletrodomésticos é importada ou usa muitos componentes importados, os salários subiram muito mais rapidamente do que os preços desses produtos, que são o sonho de consumo de todas as famílias. Esses três fatores deixaram de existir: o desemprego e a informalidade voltaram a crescer, o crédito está se contraindo e o real sofreu forte desvalorização. Acabou a mágica.

País de classe média ? Pessoas com renda mensal a partir de R$ 291,00 foram incluídas na classe média, sem que sua qualidade de vida justificasse essa ascensão social meramente estatística

A estrutura social de um país é profundamente marcada pela distribuição da propriedade e o perfil do mercado de trabalho. A primeira influencia de - cisivamente as condições iniciais da vida de cada um, enquanto o emprego determina o tipo de inserção que a maioria das pessoas terá na sociedade.

Os governos do P T nem democratiza-ram a propriedade nem tornaram a estrutura produtiva brasileira mais complexa, de modo a demandar trabalho qualificado em mais alto grau. Não aproveitaram a excepcional conjuntura internacional e a bonança dela decorrente para realizar reformas estruturantes, aquelas capazes de consolidar ganhos e avanços. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica. Toda a melhora se concentrou no consumo individual de curto prazo, fortemente alavancado pela expansão do crédito.

A afirmação de que o Brasil se transformou em um país de classe média não tem sentido algum. Para poder dizer isso, o governo adotou um critério de corte muito rebaixado, estabelecendo uma renda mínima extremamente baixa para o ingresso nessa classe. Pessoas com renda entre R$ 291,00 e R$ 1.029,00 mensais passaram a ser classificadas assim.

Graças a essa manipulação estatística, nada menos do que 54% dos chefes de família sem escolaridade ou com ensino fundamental incompleto e 64% das em - pregadas domésticas, que são o estrato inferior do mercado de trabalho urbano, foram incluídos na classe média, sem que sua qualidade de vida jus tificasse essa passagem.

Falsificou-se assim um conceito sociológico criado na década de 1950 para descrever a expansão dos chama - dos “empregos de colarinho branco” nas grandes empresas típicas da Segunda Revolução Industrial. Foi durante o chamado “milagre econômico” da década de 1970, na ditadura militar, que esse tipo de ocupação mais se expandiu entre nós.

No período recente, ao contrário, o setor de serviços de baixa qualificação foi responsável pela maioria dos novos empregos. Medida somente pelo critério da renda monetária, a redução da pobreza não capta outras dimensões essenciais de bem-estar e cidadania. Uma medida multidimensional mostraria que a melhora da qualidade de vida foi muito menor do que a que tem sido anunciada.

Entende-se isso facilmente ao se observarem três características do modelo que o P T implantou: a. Por causa da permanente sobrevalorização do câmbio (até 2015), a indústria brasileira não conseguiu capturar para si o aumento da demanda de bens de consumo. O resultado foi um aumento das importações, com desindustrialização e queda no saldo comercial do país (ver Desindustrialização, Boletim de Conjuntura nº 2 da Fundação João Mangabeira, outubro de 2015).

A estrutura produtiva do país regrediu, com impacto óbvio sobre a possibilidade de sustentar padrões de vida mais elevados.  A renda monetária das famílias aumentou, mas manteve-se intacta a tradicional deficiência na oferta de serviços coletivos essenciais, como saneamento, educação, saúde, transporte e segurança. Parte dos ganhos foi absorvida pela compra desses serviços no mercado privado, especialmente de educação e saúde.

Houve grande estímulo ao endividamento. Na média, o estoque de dívidas atingiu 45% da renda familiar anual e passou a comprometer 20% dos rendimentos correntes. Com a reversão do ciclo econômico, o aumento do desemprego e a queda na renda, esse endividamento torna muito mais vulneráveis as classes populares (ver Desemprego, Boletim de Conjuntura nº 3 da Fundação João Mangabeira, novembro de 2015).

O papel do salário mínimo -  a indexação dos benefícios da seguridade social ao salário mínimo foi, de longe, o principal mecanismo de distribuição de renda nas últimas décadas. Esta é uma conquista da constituição de 1988.

A política de salário mínimo é muito importante para a economia e a sociedade brasileiras, pois ele é o indexador da renda de camadas pobres grandemente majoritárias (embora não das mais pobres), tanto no mercado de trabalho (formal ou informal) quanto nas aposentadorias e na maioria dos demais benefícios da Seguridade Social.

Como vimos na, a combinação dos dispositivos constitucionais de 1988 com a recuperação consistente do salário mínimo – que já dura mais de vinte anos – constituiu, de longe, o mais importante mecanismo de redistribui- ção de renda no Brasil contemporâneo. Isso está fortemente ameaçado agora. O debate em torno desse tema tende a crescer (ver “Salário mínimo, ontem e hoje”).

O péssimo desempenho atual da economia brasileira e a presença de pressões inflacionárias têm reatualizado a argumentação de que a política de valorização do salário mínimo impõe uma grave restrição ao crescimento econômico, ao encarecer a mão de obra e inibir os investimentos.

Seria preciso, pois, diminuir o ritmo de ganhos para aumentar a competitividade da economia. Isso não é verdade. A Figura 9 mostra que o salário mínimo não está muito acima de sua média histórica, a relação entre o salário mí- nimo e o PIB per capita subiu lentamente na última década. Ou seja, quando observamos o indicador relevante – pois o PIB per capita é uma boa aproximação dos ganhos de produtividade da economia –, vemos que o aumento do salário mínimo tem sido adequado ao equilí- brio macroeconômico do país.

O ritmo de ganhos do salário mínimo já é fortemente decrescente, por causa, principalmente, da queda observada nas taxas de crescimento do PIB, o indexador mais importante dos aumentos reais. No primeiro governo Dilma, o crescimento real foi muito menor do que no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. No segundo mandato de Dilma, o PIB parou de crescer.

Os percentuais de aumento real foram os seguintes: FHC 1º mandato: 29,45% FHC 2º mandato: 9,98% Lula 1º mandato: 20,68% Lula 2º mandato: 34,87% Dilma 1º mandato: 11,36% O desempenho dos governos do PT é melhor, mas não é qualitativamente diferente do dos governos do PSDB. Essa melhora na margem pode ser explicada pela conjuntura internacional excepcionalmente favorável que prevaleceu durante o segundo mandato de Lula.

Combinado com os dispositivos que regulam o sistema de Seguridade Social, o salário mínimo é a principal via de distribuição de renda no Brasil, atingindo diretamente cerca de 70% dos trabalhadores ativos e a quase-totalidade dos aposentados. Além disso, o gasto público com esse salário é o que tem o maior efeito multiplicador sobre o crescimento do PIB, da renda e do emprego. Ele deve ser preservado.

Por que a desigualdade se reproduz?   causas estruturais, que atuam por dentro do sistema socioeconômico, contribuem decisivamente para que a renda nacional permaneça concentrada. A alteração desse quadro exige reformas.

Os planos Cruzado (1986) e Real (1994) já haviam produzido quedas significativas nos indicadores de pobreza, mas elas não se sustentaram. Representaram flutuações, sem inaugurar períodos qualitativamente novos. Tudo indica que a experiência recente, nos governos do PT, repete esse padrão.

A desigualdade social brasileira, mais uma vez, mostra a sua resiliência. Há divergências na interpretação desse fato. O pensamento conservador enfatiza as deficiências do nosso sistema educacional, pois a educação teria o papel de elevar a qualificação da for- ça de trabalho, tornando-a mais bem remunerada. Assim, a distribuição de renda ocorreria no interior dos processos normais de acumulação de capital, pela melhor capacitação dos trabalhadores, o aumento da sua produtividade e a consequente elevação de salários.

Essa visão subestima as causas estruturais que operam por dentro do sistema econômico. Podemos destacar, pelo menos, quatro dessas causas:

a. A concentração da propriedade A concentração da riqueza – ou seja, do estoque de bens, na forma de terras, imóveis, fábricas etc. – é maior que a da renda. Estima-se que 1% da população detenha 53% do estoque de riqueza do país.Isso evidencia que as questões da pobreza e da desigualdade não dizem respeito apenas à renda, ou seja, ao fluxo monetário corrente. Elas nos remetem também à criação da riqueza no passado, à forma como ela se cristalizou e foi apropriada ao longo do tempo. Os dados disponíveis mostram um aumento na concentração da propriedade. As grandes propriedades rurais ocupavam 51,6% da área total em 2003 e 56,1% em 2010, enquanto os ativos totais dos cinquenta maiores bancos, no mesmo período, passaram de 100% a 174% dos ativos das quinhentas maiores empresas.

b. A estrutura do mercado de trabalho

A desindustrialização do país e o tamanho insuficiente do moderno setor de serviços fazem com que a economia brasileira absorva pouco trabalho qualificado, o mais bem remunerado. O problema não está situado principalmente na oferta (educação), mas na demanda de força de trabalho (estrutura produtiva do país). A grande maioria dos empregos gerados nos últimos quinze anos concentrou-se nos serviços de baixa qualificação – office-boys, vigilantes, balconistas, vendedores etc. –, que pagam até dois salários mínimos.

c. O sistema tributário

A tributação pode ser progressiva (quando atinge mais fortemente as rendas mais altas), proporcional (quando é neutra em relação aos estratos de renda) ou regressiva (quando penaliza os mais pobres). O Brasil está neste último caso: as famílias pobres gastam 32% de sua renda em pagamento de impostos, enquanto as mais ricas gastam 21%.11 Isso é uma decorrência do sistema tributário brasileiro, fortemente baseado em impostos indiretos, que incidem sobre o consumo. É muito baixa a tributação sobre propriedades, heranças e patrimônio em geral. O imposto de renda, por sua vez, penaliza fortemente a classe média, pois as rendas recebidas sob a forma de distribuição de lucros e dividendos, tipicamente apropriadas pelos mais ricos, estão isentas de tributação. Por isso o pequeno grupo que ganha mensalmente mais de 160 salários mínimos paga apenas 6,5% de imposto sobre sua renda total. Essa estrutura de tributação – que resulta de decisões políticas – destoa dos padrões aplicados nos países mais ricos e contribui para concentrar a renda nacional.

d. O perfil dos gastos do Estado

O gasto social do Estado, que tem uma função redistributiva, vem sendo ampliado desde que a Constituição de 1988 entrou em vigor. Atingiu 15% do PIB em 2013. Mas também há gastos fortemente regressivos. Um deles é o da rolagem da dívida pública, que remunera a parcela mais rica da população. Nos doze primeiros anos de existência, entre 2003 e 2015, o programa Bolsa Família distribuiu R$ 168 bilhões aos seus beneficiários, o que equivale a somente 37% do que o Estado gasta por ano com o pagamento de juros da dívida pública. O problema não é só o nível da taxa de juros, mas o próprio regime de política monetária adotado pelo Banco Central. Os títulos públicos brasileiros têm a rentabilidade de uma poupança premiada e a mesma liquidez da moeda, o que é uma clara anomalia. Os pobres só têm acesso à moeda comum, que se desvaloriza conforme a taxa de inflação, enquanto os ricos manejam também essa “moeda financeira” que rende juros, outro mecanismo fortemente concentrador da renda nacional.

Olhando para A frente

Precisamos combinar aumento da renda per capita e políticas distributivas. o trinômio virtuoso é aquele que combina democracia, crescimento e distribuição. É essencial aumentar a oferta de serviços essenciais de caráter não mercantil, como saúde, saneamento e educação

Somos um país com muitos pobres e com grandes desigualdades. Mas não somos miseráveis. O esforço que fizemos no século XX criou um parque industrial articulado e quase completo. Nossa população ainda é jovem, com presença marcante de pessoas habituadas à produção moderna e quadros técnicos em bom número.

Nossa agricultura é capaz de responder com rapidez a estímulos adequados. Temos vasto espaço geográfico, recheado de recursos, e centros internos geradores de dinamismo. Precisamos transformar a eliminação da pobreza e da incultura, sob todas as suas formas e manifestações, em um objetivo explícito ao qual a sociedade subordina os demais, deixando de considerá-la como o resultado presumido de um modelo econômico qualquer.

A pobreza tende a cair quando a renda per capita cresce ou quando a distribuição dessa renda melhora. Nossa experiência histórica mostra que se obtém esse resultado mais rapidamente quando se busca conscientemente um aumento da equidade do que quando se confia apenas nos efeitos do crescimento econômico.

Mas a melhor situação, é claro, é a que combina os dois processos. Crescer e distribuir, isso permanece sendo o nosso maior desafio. Ele não diz respeito apenas à questão social, mas ao próprio desenvolvimento econômico. Quando exagerada, a desigualdade também afeta de múltiplas formas o potencial de crescimento da economia nacional. Democracia, crescimento e distribuição, eis o trinômio que devemos buscar.

Não se trata de um crescimento qualquer. No longo prazo, o aumento da produtividade e da complexidade de uma economia é o que permite um desenvolvimento mais inclusivo. No interior de uma rede produtiva mais densa, circuitos virtuosos de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e cultural se retroalimentam, fazendo com que os ganhos de produtividade se espalhem por diversos grupos sociais.

É o contrário do que o Brasil fez nos últimos anos, quando cresceu impulsionado pelo desempenho do setor primário produtor de commodities.

O ciclo do PT se esgotou, mas a questão da distribuição de renda e riqueza permanece decisiva para o nosso futuro. Se adotarmos como referência um padrão de vida decente para todos os brasileiros, resta muito a fazer.

A renda média do país continua num patamar inferior ao necessário e é muito mal distribuída. Se usarmos a linha de pobreza adotada pelo programa Bolsa Família, ainda temos 17 milhões de pobres; se usarmos os critérios da OCDE, são 57 millhões. A renda deles precisa crescer acima da média por muito tempo para que deixem essa situação.

Políticas sociais continuam sendo necessárias. Os erros que o PT cometeu não devem nos levar a abandonar esse ponto de vista. Para ser mais efetivo, o processo redistributivo precisa incluir a generalização da oferta de serviços essenciais não mercantis, como educação e saúde, que hoje, quando contratados no mercado, pesam fortemente sobre os orçamentos familiares.

Por fim, uma política eficaz de distribuição de renda deve ser complementada pela redistribuição da riqueza. Thomas Piketty, em O capital do século XX, mostra que a taxa média de retorno do capital tende a superar a taxa de crescimento do produto, fazendo com que a riqueza herdada cresça mais do que a renda corrente.

Esse padrão histórico predominou no século XX, com exceção dos períodos das duas guerras mundiais, e tende a se tornar mais forte nos sistemas econômicos atuais, provocando aumento da desigualdade. A distribuição inicial de recursos disponíveis a cada geração precisa ser sucessivamente equalizada, o que exige imposto eficaz sobre heranças, tributação progressiva, taxação de grandes fortunas e reformas estruturais.

Sem isso as políticas distributivas ficam condenadas a buscar linhas de menor resistência que, em geral, envolvem aumento dos gastos públicos de natureza social, com o impacto fiscal decorrente daí. Além disso, essa distribuição tende a se circunscrever apenas à base da pirâmide social, como mostra a nossa experiência recente, com pouco impacto sobre o conjunto.

Isso reforça a necessidade de uma reforma tributária. Impostos fortemente progressivos desconcentram a renda no topo da distribuição, permitindo que o Estado redistribua essa renda na base. Tributação e gastos sociais podem formar um binômio bastante dinâmico.

Sem reformas estruturais, os avanços na desconcentração da renda são frágeis. Podem ser revertidos em decorrência de alterações na conjuntura nacional e internacional. O modelo econômico vigente no Brasil não contém nenhum elemento estruturante que aponte de forma consistente para a desconcentração. Reformas estruturais combinadas com políticas econômicas e sociais ousadas, de modo a compatibilizar a dinâmica da distribuição com a dinâmica do crescimento – esse é o caminho para o Brasil.

Cesar Benjamin com Coordenação Geral de Renato Casagrande e Coordenação Editorial de Márcia Rollemberg - Publicado originalmente pela Fundação João Mangabeira. Para um acesso aos gráficos, ir ao site http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/201606010243400.boletimconcentracaoderenda.pdf

Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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