Kafka reproduz a negação do estado democrático de direito e, ao mesmo tempo, leva o leitor a perceber que, mesmo vivendo sob a égide da democracia "plena", há que se não perder de vista que as instituições não guardam sua razão de ser.
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro
O romance escrito por Kafka, e que não chegou a ser concluído por ele, conta a história de Josef K., um bancário que é processado sem saber o motivo. A figura de Josef K. é o paradigma do perseguido que desconhece as causas reais de sua perseguição, tendo que se ater apenas às elucidações alegóricas e falaciosas vindas de muitas fontes.
O processo contra Josef K. foi instaurado por sua incapacidade de confessar sua culpa, e, por conseguinte, sua humanidade. O tema, largamente explorado por Kafka em toda sua obra, da não-humanidade torna o livro atual, provocando questionamentos dos costumes e crenças arbitrários da vida, que podem parecer, sob certo aspecto, tão bizarros quanto os acontecimentos da sua.
Serviço público
Tentando encontrar o sentido de uma acusação que não tem conteúdo, o personagem indaga à jovem amiga sobre a convicção de sua inocência: "acredita então que estou inocente?― Bem, inocente... ― disse ela ― não quero pronunciar já uma sentença de tanta responsabilidade; não o conheço; no entanto, para mandarem logo uma comissão de inquérito, deve tratar-se dum criminoso de respeito”.
Kafka reproduz a negação do estado democrático de direito e, ao mesmo tempo, leva o leitor a perceber que, mesmo vivendo sob a égide da democracia "plena", há que se não perder de vista que as instituições não guardam sua razão de ser na prestação de serviço público, mas na submissão ao poder e às camadas dominantes.
Estou certa de que Kafka inspira o juiz Sergio Moro.
Maria Fernanda Arruda é escritora e colunista do Correio do Brasil.