Locarno, Ancine e o diálogo impossível

Arquivado em:
Publicado Quarta, 07 de Agosto de 2019 às 09:00, por: CdB

Começa nesta quarta-feira o Festival Internacional de Cinema de Locarno, onde o Brasil está sempre presente, desde a época do Cinema Novo. Este ano, as notícias sobre os planos de criação de um filtro ou pré-censura na Ancine já deram a volta ao mundo, e geram inquietação.

Por Rui Martins, de Locarno, na Suíça:
A-febre-300x165.jpg
Em defesa da cultura índia
A própria nova diretora do Festival, Lili Hinstin, está inquieta, pois o risco do controle dos filmes se insere na preocupação geral e mundial em favor da liberdade de criação. Se nada for feito para impedir as transformações dentro da Ancine, é provável que os filmes brasileiros este ano em competição, no Festival de Locarno e logo a seguir na Mostra de Veneza, sejam os últimos filmes sem censura nos festivais. E, depois da vigência da censura, é muito provável não haver mais filmes brasileiros nos festivais. Surpreendeu a proposta do principal produtor brasileiros, Rodrigo Teixeira, de se dialogar com Bolsonaro, para o Brasil não perder a importância conquistada no cenário internacional e para que a indústria cinematográfica não seja paralizada, gerando desempregos e deixando de trazer milhões de dólares ao Brasil. É normal a preocupação de um produtor diante da ameaça feita ao cinema e suas repercussões comerciais. Porém, a questão principal, no momento, é a relacionada com a liberdade de criação, e isso interessa e reúne todos os realizadores, roteiristas, criadores, enfim a toda a classe, inclusive artistas. Que tipo de diálogo seria possível? Negociar até onde a tesoura poderá cortar? negociar um cinema evangélico, conservador, reacionário, digno da época de Franco e Salazar? Negociar um cinema brasileiro comercial? Não acredito nesse tipo de diálogo com o diabo. Filmes brasileiros na competição internacional Este ano, participam da competição internacional um filme longa-metragem e dois filmes curtas-metragens. Pode-se talvez dizer, os últimos filmes brasileiros participantes do Festival de Locarnio não submetidos a filtros ou censuras. Teme-se também que os novos filmes submetidos à censura não tenham mais as qualidades exigidas pelos festivais para serem selecionados. Mas ainda não chegamos a essa situação e é brasileiro o primeiro filme a ser exibido para o público já amanhã, na competição internacional. Trata-se de A Febre de Maya Da - Rin, uma cineasta cuja biografia não passaria, por certo, no filtro imaginado pelo presidente Bolsonaro. Carioca, Maya, que é cineasta mas também artista visual, tem mestrado em cinema na Nova Sorbonne, em Paris, e participou de trabalhos visuais e cinematográficos na Escola de Cinema de Cuba. O tema do filme também não passaria pelo filtro, pois é a história da vida de um índio já "civilizado", que trabalha como vigia no porto de Manaus. Aos quase cinquenta anos, o índio tem nostalgia da época vivida na floresta. O filme A Febre é extremamente atual porque se insere no noticiário brasileiro publicado aqui na Europa, dando conta da invasão das reservas indígenas por garimpeiros e da intenção do presidente Bolsonaro de quebrar a sacralização das reservas para exploração de ouro e outros minérios. O tema do ataque aos indígenas vem junto com as notícias do desmatamento da Amazonia, E a previsão é de salas de cinema cheias para ver A Febre e da presença de um público interessado em fazer perguntas à realizadora sobre a situação brasileira, logo após a projeção do filme. Existem dois curtas-metragens brasileiros na competição internacional Pardos de Amanhã, abreviação de Leopardos de Amanhã. Um é o filme de Camila Kater, A Carne. E o outro, é Chão de Rua, do paranaense Tomás von der Osten. Há ainda um curta-metragem Swinguerra, de Barbara Wagner com Benjamin de Burka, na mostra Going Ahead, Cinema negro em destaque O Festival de Locarno programou um grande destaque para os filmes que focalizam os negros no Brasil, dentro de um programa geral que inclui também filmes de outros países enfrentando o racismo. "Ser negro numa perspectiva internacional de contos do último século", como definiu a diretora Lili Hinstin. Os filmes em destaque são Orfeu Negro, de Marcel Camus; Amor Maldito, de Adele Sampaio; e Abolição, de Zózimo Bulbul. Essas escolhas se integram também com filmes americanos sobre a realidade dos Estados Unidos, mais evidente depois dos recentes atentados nos Estados Unidos. Como diz a diretora Hinstin, não se pode escolher um filme apenas por seu conteúdo, porém esses três filmes integram também a arte no conteúdo. Orfeu Negro, que talvez a nova geração não conheça, será a oportunidade para muitos conhecerem esse filme musical antológico franco-brasileiro, inspirado em Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes. Palma de Ouro em Cannes e Oscar do Melhor Filme Estrangeiro. Amor Maldito foi o primeiro filme dirigido por uma realizadora negra. Nisso é um filme histórico, feito em 1984. Mas o seu enredo se ajusta perfeitamente à realidade atual, envolvendo homossexualismo e evangelismo, quando ainda no começo de sua fase de expansão. Baseado numa história real, o filme mostra a relação amorosa entre a executiva Fernanda e a ex-miss Sueli. Reprimida pela sua família evangélica e conservadora, Sueli comete suicídio. Fernanda é acusada de responsável pela morte da companheira e julgada por um tribunal preconceituoso. Um pormenor importante, a Embrafilme, que cuidava do cinema durante a ditadura militar brasileira, se negou a exibir o filme, que só foi exibido em alguns cinemas de São Paulo, considerado na época como pornochanchada. Agora redescoberta, Adélia Sampaio, é mineira criada no Rio de Janeiro, filha de empregada doméstica. Trabalhava como telefonista da Difilm, onde aprendeu a fazer filmes, até chegar ao longo metragem Amor Maldito. Abolição, de Zózimo Bulbul, foi um filme feito em comemoração dos cem anos da abolição da escravidão no Brasil. Zózimo era ator e realizador negro, preocupado com a valorização dos negros no Brasil. Esses filmes foram sugeridos pela militante LGBT Janaína Oliveira, do Forum Itinerante do Cinema Negro, que participará das mesas r4dondas com o público, após a exibição dos filmes. Outros destaques em Locarno? O Festival de Locarno exibirá na Piazza Grande, um curta-metragem de Jean-Luc Godard - A Carta a Freddy Buache, que foi diretor do Festival e da Cinemateca Suíça, falecido este ano. O filme não foi feito agora, mesmo porque Godard já deve ter quase 90 anos. Foi feito em 1982. Uma preciosidade. Outro destaque para um filme rodado na Notre Dame de Paris, mas antes do incêndio, dirigido por Valerie Donzelli. Notre Dame será exibido no telão de 300 metros quadrados da Piazza Grande de Locarno. Outro destaque, o filme sobre Diego Maradona, de Asif Kapadia, também a ser projetado no telão da Piazza Grande. E para concluir, o ex-diretor do Festival de Cinema de Locarno, o italiano Carlo Chatrian, deixou o posto para ser diretor-artístico do Festival de Cinema de Berlim, que ocorre em fevereiro. (Publicado também no Observatório da Imprensa) Rui Martinsestá no Festival Internacional de Cinema de Locarno.
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo