Ninguém entende o Fome Zero

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Publicado sábado, 5 de abril de 2003 as 13:21, por: CdB

“A fome latina não é somente um sintoma
alarmante: é o nervo da própria sociedade.”
Gláuber Rocha, em A Estética da Fome

Assim que empossado na presidência da República Lula lançou o programa Fome Zero. Foi, por assim dizer, mágica a simpatia social que o enunciado provocou.

Como foi possível tamanha unanimidade? Ninguém discordou. Como é que sujeitos forjados no individualismo e na infantilização se deixaram seduzir por uma provocação tão generosa e estranha à ordem imperante?
Elias Canetti (em Massa e Poder) formulou as questões relativas ao comer no capítulo do livro que denominou “Entranhas do Poder”. A maior coesão de um grupo de pessoas que comem juntas é a que se produz ao comer um animal, um corpo, pois o ato significa que não se comerão entre si. O poderoso, o ventripotente, é o chefe autoritário que, não podendo crescer para cima, cresce para os lados, é aquele que se serve antes dos outros e o que serve lhe pertence.
Contrariando todos os vorazes de poder, ao convocar a nação para dividir a comida, o presidente Lula surpreendeu por ter lançado uma filosofia, filosofia incompreensível para a subjetividade imperante, como também para muitos membros do Partido dos Trabalhadores.
Evidentemente, Fome Zero não significa literalmente a morte da fome, inerente que é para o processo da vida, mas combate essencial à miséria. Combate, não guerra.

Combate porque a diferença dos fundamentos do exercício do poder a que estamos acostumados na tradição brasileira e mundial inaugurou uma filosofia política baseada na afirmação da vida.
Ao começar as ações do Fome Zero nos municípios mais pobres do país, o presidente Lula criou uma metodologia. Isto é: começar pelo pior. Em vez de dividir o bolo depois de fazê-lo crescer, começar a dividi-lo de saída.

Ao lançar a aventura de uma campanha contra a miséria, mesmo antes de ter o programa estruturado deu o segundo tom metodológico: primeiro fazer, depois pensar. Fazer pensando e pensar fazendo – o que significa não se submeter à ditadura do planejamento nem ao imobilismo da burocracia.

O capitalismo mundial impõe amarras ao governo Lula que vão precisamente na contramão da vocação do governo, mas com o grito do Fome Zero o presidente anuncia uma nova paixão política, distinta daquelas que motivam as cenas de horror a que assistimos pela televisão.

O ministro Graziano, ou Desgraziano, como poderia grafar o José Simão, é um mártir, somente alguém disposto ao sacrifício pode comandar uma empreitada como essa, um padre, uma freira… Betinho também era, sentenciado que estava pelo vírus da Aids. Mártir porque lançado contra o senso comum, contra a naturalização da injustiça e da miséria humana e, ao mesmo tempo, sintonizado com o mais fundo da alma popular.

O Fome Zero não é um programa de governo, mas uma campanha de mobilização social, a deflagração de uma atitude nova na vida pública, o inconformismo transformado em atitude.

Um programa de governo deveria evidentemente ser regido pelo trabalho e pela educação. A educação como trabalho das crianças, o trabalho como educação dos adultos. Só pelo trabalho e pela educação é que o homem se dignifica e enriquece em cidadania. E, como dizem os italianos, chi non lavora non mangia. Daí o êxito dos programas de apoio às famílias que repassam dinheiro em troca de permanência na escola, ou que auxiliam com frentes de trabalho, com acesso à saúde, com promoção de protagonismo, autonomia e associativismo.
Mas um arrastão nacional para acabar com o analfabetismo e um para diminuir drasticamente o desemprego não podem ser contrários à filosofia do Fome Zero. Não é negando assistência emergencial nem a solidariedade em estado primário que se alcança a correção das políticas públicas, mas exacerbando a solidariedade é que se multiplicam as opções e a capacidade inventiva de quem conduz ações dispostas a transfomar o Brasil num laboratório de experimentação para a cidadania.

A questão da fome, como se sabe, é be