Uma reflexão sobre a precisão tecnológica e a beleza das imperfeições que mantêm a humanidade viva e sensível.
Por Luciano Siqueira – de Brasília
Sempre me intrigou a verdade cada vez mais comprovada, sobretudo na atualidade protagonizada pela inteligência artificial, super-robôs e tecnologias várias, de que a vida se decide nos mínimos detalhes. Fração de segundos, em inúmeros casos.
Na medicina, cirurgias complexas que não se faziam porque faltava a garantia da mais absoluta precisão, hoje robôs supervisionados pelo cirurgião humano salvam vidas e mesmo, em certos casos, a capacidade cognitiva do paciente.
Nas recentes Olimpíadas de Paris, vimos na TV que um atleta supera o outro porque um dos dedos do pé escapou um pouco ao controle e o equilíbrio sobre uma trave ou um tatame não é o mesmo do concorrente que, elevado à perfeição, faz-se vitorioso.
Pior: mísseis teleguiados ou torpedos mortíferos conduzidos por drones controlados a centenas de milhares de quilômetros de distância atingem alvos humanos numa fração de segundos.
Mas a maioria dos 8,2 bilhões de terráqueos poucos se beneficiam de tamanha precisão. Sequer toma conhecimento disso.
Sono noturno
Ou muitos, como eu, nem tiram proveito e ainda perdem uma parcela do sono noturno envoltos em inapelável inquietação. Estou entre os que sempre enxergaram a beleza nas incompletudes da vida, no mundo mineral, nas plantas e animais e em nós mesmos. Afinal, boa parte dos impulsos que alimentam o bom uso das nossas energias físicas e subjetivas ocorre exatamente na tentativa de suprir carências e imperfeições.
Fôssemos os humanos perfeitos, certamente já não teríamos tanta necessidade de afeto ou não nos veríamos compelidos pela curiosidade na busca de saber como as coisas são e como a vida flui. O traço leve que dá forma e coerência às cores pintadas pelos expressionistas, os acordes sincronizados de uma trilha sonora e os versos instigantes de um poema, fôssemos perfeitos e precisos, repito, não fariam nenhum sentido.
A beleza da vida sairia pelo ralo.
Mas não me deixo sucumbir pelo espanto de agora na esperança de que, a despeito dos mínimos detalhes da perfeição científica e técnica, permaneçam vivos a necessidade do canto do pássaro que se aproxima da janela, o equilíbrio instável da rosa que brotou aos primeiros minutos da manhã e essa brisa que, furtiva e insinuante, me acaricia o rosto.
Luciano Siqueira, é Médico, vice-prefeito do Recife, membro do Comitê Central do PCdoB
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