O PT e as previsões de Paul Singer

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Publicado Domingo, 22 de Abril de 2018 às 23:45, por: CdB

O Direto da Redação conclui a seleção de textos do economista Paul Singer, escritos em 2008, verdadeiras profecias ou previsões sobre a ascensão e queda do PT, que acabam de se concretizar dez anos depois.  Devemos essa seleção ao nosso colaborador Celso Lungaretti, autor do livro  Náufrago de Utopia, que mantém um blog do mesmo nome. (Nota do Editor)

Por Paul Singer, de São Paulo:

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A análise e previsão da crise do PT por um de seus fundadores, Paul Singer

A profissionalização cada vez mais completa do partido altera o seu relacionamento com os movimentos sociais, ONG's, sindicatos, núcleos de bairros ou de empresa.

Paul Singer (1932-2018)


Antes, os dirigentes e militantes do partido pertenciam a entidades de luta da sociedade civil e seus laços com elas não se rompiam quando passavam a dedicar mais do seu tempo livre ao partido. Em certo sentido, representavam os movimentos no partido mais do que o partido nos movimentos, porque sua lealdade com estes últimos era mais antiga, era de origem. 

Quando se profissionalizam, dirigentes e militantes passam a depender vitalmente do partido para seu sustento e para sua carreira. Logo, representam o partido perante os movimentos e não mais o inverso.

O partido oculto só visa a uma coisa: ganhar eleições. Para ele, as entidades de luta e os amadores são meios para o fim maior. Ao contrário do partido manifesto, que se identifica com as classes subjugadas e encampa inteiramente suas aspirações, o partido oculto só se identifica com seus próprios objetivos políticos. 

Para ele, movimentos e amadores são aliados, cujo valor se mede pelo número de votos que proporcionam aos candidatos partidários. Portanto, se dispõe a atender as reivindicações dos mesmos apenas na medida do seu valor eleitoral.

O que marca o partido subterrâneo é a sua pantagruélica fome de dinheiro. Tudo o que ele faz custa dinheiro e, na medida em que o partido cresce e passa a aspirar ganhar as eleições majoritárias em todos os níveis, surge a necessidade de gastar cada vez mais. 

O partido subterrâneo já é um partido comum, inserido clandestinamente nas roupagens dum partido de esquerda. Menospreza os preconceitos pequeno-burgueses dos amadores e se lança, sem mais, à captação de mais e mais dinheiro. 

Capta contribuições não contabilizadas de empresas e banqueiros, em troca de compromissos não divulgados. E capta contribuições de concessionários de serviços públicos, de fornecedores de obras e serviços a governos, que o partido controla em maior ou menor medida. Para que isso seja possível, torna-se necessário que postos-chave destes governos sejam entregues a agentes do partido subterrâneo.
 
O mergulho do partido subterrâneo no mundo da delinquência e da corrupção é apenas um passo a mais no processo de adoção do modo de ser dos partidos rivais. Este mundo já existia desde que o poder passou a ser disputado por eleições e que o governo passou a gastar uma fatia cada vez mais considerável do produto nacional. Ou seja, muito antes da fundação do partido de esquerda.

A experiência histórica dos países capitalistas democráticos mostra de que não há como evitar a corrupção no setor público por meios burocráticos de controle, fiscalização e auditoria. Pela simples razão de que a fiscalização, o controle e a auditoria são executados por seres humanos subornáveis. De modo que – quanto mais pessoas forem engajadas no combate à corrupção – esta terá o seu preço mais elevado, porque serão mais mãos a serem engraxadas (*).
 
Esta visão reconhecidamente cínica da moral pública se baseia na hipótese de que a corrupção é imprescindível à disputa eleitoral do poder de estado no capitalismo. 

O poder econômico dominante evidentemente se restringe a uma minoria e jamais ganharia qualquer eleição honestamente, isto é, sem enganar grande parte dos eleitores, ao tratá-los como compradores. Os capitalistas dominam em parte os aparelhos ideológicos – os meios de comunicação de massa, a educação escolar, a cultura de massa – mas isso não basta. Para reter influência sobre os eleitos, que exercem o poder de estado, eles têm que transformar os prélios eleitorais em espetáculos e cada vez mais caros.
 
Não se trata duma conspiração dos capitalistas para abastardar a democracia. Tudo acontece de modo natural. As massas pobres, as incultas, as que são ocupadas inteiramente pelos seus sofrimentos pessoais e as muitas que se divertem assistindo o desenrolar da história como espectadoras formam grande parte do eleitorado. 

Cabe ao partido de esquerda despertá-las – conscientizá-las, dizíamos pretensiosamente no século passado – oferecendo-lhes uma educação política, que só é eficaz quando unida à prática das lutas sociais. A paixão do partido de esquerda mostra que isso é possível, que dá certo. É verdade que à paixão se seguiu a decadência, o que foi natural mas não fatal.
 
NATURALIDADE E FATALIDADE – Quando dizemos que uma história é natural, queremos dizer que ela não é artificial, ou seja, que ela não é um artifício deliberadamente produzido por alguma mente pervertida. 

O natural é o mais fácil, é o que não exige um esforço deliberado, superando obstáculos, para acontecer. Tal esforço para evitar que o natural ocorra, é possível. Só por isso, o natural não é fatal.
 
No caso do partido de esquerda, a decadência talvez pudesse ter sido evitada. Ela não o foi porque tudo aconteceu de modo tão sorrateiro. O partido subterrâneo se desenvolveu sem se dar a conhecer, sem assumir suas verdadeiras feições. 

O partido de esquerda não deixou de mostrar que mudava enquanto crescia, mas estas mudanças foram submetidas ao escrutínio dos inscritos no partido, o que de alguma maneira ocultava seu significado. A construção da linha ideológica continuou nas mãos de amadores, de modo que as mudanças adquiriam a aparência de conexão e compatibilidade com os valores e princípios do partido.

Subitamente, uma crise política, originada por um fato fortuito, rasga os véus e deixa ver as feições nada atraentes do partido subterrâneo. O partido de esquerda se encontra em estado em choque. 

Os amadores, embora afastados da direção, haviam, em grande número, acompanhado a vida do partido, participando ocasionalmente dos seus governos. Para estes se coloca o desafio: constitui a crise a oportunidade histórica de redimir o partido de esquerda, separando-o completamente do seu hóspede oculto?
A crise política oferece uma oportunidade histórica única ao partido de esquerda de encarar sua trajetória natural e de refaze-la de forma radicalmente diferente. Na realidade, a crise torna impossível ao partido de esquerda continuar ignorando o que se havia desenvolvido em seu seio. Se ele continua democrático na determinação de seus rumos, cabe aos filiados decidir o que desejam: 
  • seguir adiante na rota da decadência, até que o partido subterrâneo tenha se apossado por inteiro do partido manifesto, tornando-o indistinguível de qualquer outro; 
  • ou, então, livrar-se do partido subterrâneo por completo e marchar num novo rumo, que permita prescindir dele, no presente e no futuro.
É freqüente que partidos de esquerda adotem métodos de fazer política que caracterizam partidos comprometidos com a manutenção dos status quo. Eles o fazem porque estes são os métodos que possibilitam ganhar eleições.

A profissionalização mais o marketing dão acesso ao poder, que oferece oportunidades de captar recursos que cobrem o custo dos aparelhos partidários e das campanhas.

Mas, é evidente que estes métodos não são compatíveis com os objetivos do partido de esquerda.
 
Abster-se de adotar tais métodos, por parte do partido de esquerda, não significa abrir mão de ganhar eleições mas  disputá-las de outra maneira. Esta consiste, basicamente, em tratar de conscientizar o eleitorado, particularmente os segmentos desprivilegiados do mesmo. 

O objetivo seria conquistar votos com argumentos que comprometam os eleitores com a mudança social almejada. Porque só este tipo de voto elege um governo que queira e possa dar todo o apoio aos movimentos, que serão os protagonistas da mudança que visa ao socialismo.

Em contraste, o voto conquistado pelo marketing tende a eleger governos comprometidos com os interesses que pagaram a conta do marketing.
*Entre os servidores públicos há gente insubornável. Se estas pessoas fossem colocadas nos centros de decisão sobre compras de bens e contratação de serviços, a corrupção poderia ser extirpada. 
Mas, deixando de lado honrosas exceções, os que encabeçam os aparelhos de estado, em todos os níveis, precisam da corrupção porque ela é o ingrediente essencial de suas carreiras: sem o dinheiro escuso eles não teriam se elegido e não teriam chance de continuar ganhando eleições. Logo, são os insubornáveis os que acabam sendo afastados.
 
PARTE FINAL - ÚLTIMO TRECHO

PROFÉTICO – fim

 
 
Paul Singer (1932-2018)
A opção de politizar e ideologizar as campanhas pelo partido de esquerda implica uma mudança estratégica nas suas relações com o que chamamos de entidades de luta – movimentos sociais, ONGs, órgãos de representação de classe etc. – que são os verdadeiros protagonistas das mudanças sociais que produzem implantes socialistas nos vazios abertos pelas crises do capitalismo.

Camponeses que obtêm terra por meio de reforma agrária, trabalhadores que assumem empresas falidas para ressuscitá-las como cooperativas autogestionárias, catadores de lixo, agricultores familiares, extrativistas, garimpeiros, artesãos de muitos ramos, etc., que se associam para resistir à concorrência mortal do grande capital, integram entidades de luta que plantam sementes da sociedade pela qual luta o partido de esquerda.

O avanço das entidades de luta produz naturalmente o eleitorado consciente, que pode levar o partido de esquerda à conquista de posições de poder governamental. Logo, a luta do partido de esquerda pelo voto consciente das classes trabalhadoras não tem por que se limitar às campanhas eleitorais. Esta luta se confunde, até certo ponto, com as lutas das entidades que produzem a mudança social. Portanto, é de interesse vital para o partido que estas lutas se ampliem e fortaleçam. 

Deste modo, o objetivo maior do partido não é ganhar eleições mas apoiar e potencializar as entidades de luta. Para tanto, o partido, enquanto partido socialista, atua como braço político das entidades que se empenham na construção do socialismo.
 
A REFUNDAÇÃO DO PARTIDO DE ESQUERDA: UM ROTEIRO POSSÍVEL – O primeiro passo no novo rumo seria assegurar aos próprios membros do partido, assim como aos aliados e simpatizantes, que de ora em diante o partido restringiria os seus gastos ao arrecadado com as contribuições dos filiados e com a venda de publicações e outros objetos – agendas, bandeiras, broches, etc. 

O novo estatuto proibiria a aceitação de contribuições acima de determinado teto, calculado como um múltiplo da contribuição anual média dos filiados. Também poderia ser proibida a aceitação de contribuições de pessoas jurídicas, inclusive de sindicatos de trabalhadores, ONG's e semelhantes. A única exceção seria a quota do Fundo Partidário.

Uma conseqüência do anterior teria de ser a desprofissionalização das instâncias do partido. É inevitável que, a qualquer momento, o partido tenha entre seus membros um certo número que esteja profissionalizado ocupando cargos no poder legislativo e executivo. O que deveria ser evitado é que o companheiro abandone o seu trabalho, para se tornar apenas um político profissional. 

Há duas razões para isso: 
  1. o profissional da política perde sua identidade com os que representa, o que produz crescente alienação do político em relação ao setor social de que provém;
  2. o profissional da política perde sua independência política e de julgamento nas relações com as pessoas de que depende o seu emprego, que podem ser o parlamentar a quem assessora, o ministro que o nomeou para um cargo de confiança ou os dirigentes partidários que o empregam. 
Uma forma de limitar a profissionalização dos membros do partido seria admiti-la por períodos não prolongados, de modo que a pessoa tenha boas possibilidades de retomar sua atividade profissional. 

Quando a pessoa se afasta do seu trabalho por muitos anos, ela se desatualiza e, além disto, as novas habilidades aprendidas no exercício da atividade política podem lhe possibilitar o início de alguma atividade profissional de mais prestígio e melhor remuneração.
 
A democracia partidária exige que haja rodízio de cargos na direção do partido, no executivo e nos de representação parlamentar. 

Digamos que o prazo máximo seja de dois anos. Isto significaria que se uma direção partidária tem mandato de quatro anos; ao fim da primeira metade do mandato, os suplentes ocupariam os cargos dos titulares e estes ficariam como suplentes. O mesmo valeria para deputados, vereadores, prefeitos, governadores de estado e presidente da República.
 
Se esta for a regra, a escolha dos candidatos seria feita de tal forma que, para cada cargo, duas pessoas seriam escolhidas, sendo decidido por acordo ou por sorteio qual delas exerceria a primeira metade do mandato e qual a segunda. O efeito esperado destas medidas seria não somente a desprofissionalização, mas considerável achatamento da hierarquia partidária.
 
As finanças do partido deveriam se tornar públicas e transparentes. A cada momento, a origem das receitas e o destino das despesas deveriam ser claros, assim como o montante de reservas em dinheiro e em depósito assim como das dívidas e os prazos de seus vencimentos.
 
 

A elaboração do orçamento do partido deveria ser feita com plena participação dos membros do partido, diretamente ou por meio de representação. A prestação de contas das direções do partido em todos os níveis deveria ser pública, em audiências abertas aos membros do partido.

A composição dos órgãos deliberativos do partido deveria obedecer a algum sistema de quotas, que garantisse representação às classes e setores sociais cuja emancipação é objetivo de luta do partido. 

Poderiam estar nesta condição: mulheres, jovens, aposentados, negros, indígenas, beneficiários de programas de transferência de renda. Estes representantes deveriam integrar as diferentes chapas que concorrem aos cargos e não serem nomeados por movimentos sociais, pois é necessário preservar a autonomia, tanto do partido quanto dos movimentos sociais.

Outro cuidado seria não permitir que os representantes por quotas de gênero, raça, condição econômica, etc., sejam maioria nos órgãos deliberativos. Isto porque é preciso garantir que a composição dos órgãos deliberativos reflita, sobretudo, as disputas entre correntes de pensamento dentro do partido. Para tanto, cada corrente deve poder compor sua chapa predominantemente com pessoas que a representem politicamente, seja qual for seu gênero, raça, etc.
 
Finalmente, seria aconselhável limitar a menos da metade o número de membros dos órgãos deliberativos que estivessem profissionalizados. Se uma regra como esta não for adotada, será grande o perigo de que, em pouco tempo, o partido se torne semelhante aos partidos comuns, compostos quase unicamente por profissionais.

Paul Singer – economista nascido em 1932 em Viena, Áustria, cujos pais conseguiram fugir do nazismo e ir a São Paulo. Economista, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Morreu dia 16 de abril. (Seleção de textos feita por Celso Lungaretti)

Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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