Os comunistas anônimos do Recife

Arquivado em:
Publicado Segunda, 28 de Março de 2022 às 06:27, por: CdB

Num clima de feroz repressão, de caça aos comunistas, Ivo discutia as luzes do socialismo com um menino magro, leitor de Seleções. Havia uma base de confiança entre nós, porque eu buscava uma razão para viver no mundo, não a encontrava, e o meu amigo Ivo afirmava ter o caminho para resolver toda a minha falta de um norte.

Por Urariano Mota – de São Paulo

Vejo na Internet que o Partido Comunista do Brasil nasceu em 25 de março de 1922. 100 anos de vida! Pesquiso mais e descubro que esse dia caiu num sábado. Mas bem poderíamos dizer que aquele sábado é hoje, sexta-feira.
foiceemartelo.jpeg
foice e martelo
O certo é que, naquela sábado de 1922, dirigentes, representantes de 73 militantes de associações políticas de trabalhadores, fundaram o partido: Astrojildo Pereira (jornalista), Cristiano Cordeiro (advogado), Joaquim Barbosa (alfaiate), Manuel Cendón (alfaiate), João da Costa Pimenta (gráfico), Luís Pérez (vassoureiro), Hemogêneo Fernandes da Silva (eletricista), Abílio Nequete (barbeiro) e José Elias da Silva (pedreiro). A pesquisa fala que a reunião terminou com todos cantando baixinho, por razões de segurança, A Internacional. Sobre Cristiano Cordeiro, é ótimo lembrar um ato no Teatro de Santa Isabel, documentado por vias indiretas na música popular. Em 1933, Cristiano Cordeiro lançou no palco do teatro a chapa “Trabalhador, ocupa teu posto”, que depois serviu de inspiração para o compositor Nelson Ferreira compor o frevo “Coração, ocupa teu posto”. Um sucesso cantado até hoje nos carnavais de Pernambuco: “Coração, ocupa teu posto Elege um amor que dê no meu gosto…” Mas prefiro falar, ainda que brevíssimo, da matéria mais perto de mim, do meu chão. Falar de quem muitas vezes é tido como de nível ao rés do chão.

Mercado Público de Água Fria

É inesquecível para mim Ivo, dono de um boxe que ficava à esquerda da entrada do Mercado Público de Água Fria. Ele estudava economia, era leitor de Celso Furtado. Foi Ivo quem me apresentou a Bira, o primeiro comunista que eu soube ser comunista em Água Fria. Bira me falou das teorias de Darwin, enquanto eu lhe respondia com a fé em Deus, ainda que eu próprio não possuísse tanta fé quanto gostaria. Antes de Bira, Ivo foi a primeira pessoa de esquerda que conheci na adolescência a se declarar assim em fenomenais discussões. Escrevo agora e noto que o reino da cultura é a pátria da comunhão de toda a gente. Num clima de feroz repressão, de caça aos comunistas, Ivo discutia as luzes do socialismo com um menino magro, leitor de Seleções. Havia uma base de confiança entre nós, porque eu buscava uma razão para viver no mundo, não a encontrava, e o meu amigo Ivo afirmava ter o caminho para resolver toda a minha falta de um norte. Existe ainda um outro comunista anônimo, de quem só vim saber da sua ideologia muitos anos depois. A gente nem imaginava, mas ali perto do Mercado, na Rua Japaranduba, havia um comunista organizado, dirigente de célula, um homem que por si só, para quem não o conheceu, parece hoje mais um personagem de história infantil. Um homem de história fantástica. Era seu Luiz, o barbeiro. Luiz Beltrão falava inglês, estudava filosofia, tanto na universidade quanto fora dela, em 1960. Um barbeiro professor de filosofia não seria mais próprio de uma história de Andersen? A gente nem se dava conta, mas o mundo da fantasia era parte da realidade dos nossos dias. E por isso o maravilhoso nos tomava como se fosse a coisa mais natural e elementar. Na barbearia de seu Luiz os moleques, os maloqueiros como eram tidos os jovens sem eira nem beira, os desocupados podiam entrar e ler à vontade os jornais e as reportagens da revista O Cruzeiro. Como se clientes fossem, todos os dias, todas as manhãs, abusando do ponto comercial, sem qualquer pagamento. Não sabíamos, aquilo era uma liberdade aberta por um comunista, barbeiro e filósofo. Sei, hoje, que os anônimos são tão importantes quanto qualquer celebridade na história. – Depende, se estiverem organizados na luta – poderia me responder o filósofo barbeiro Luiz Beltrão. Então eu conserto: – Os comunistas fazem a pátria onde os ninguéns se tornam alguém. Agora, sim, acho que o barbeiro Luiz iria gostar desta lembrança.  

Urariano Mota, é Jornalista do Recife. Autor dos romances Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo