“Você tem que tirar toda a roupa e agachar três vezes de frente, três vezes de costas. Um dia a funcionária me fez agachar quase 15 vezes. Ela disse que não estava conseguindo me ver. E falava: ‘faz força, abre essa perna direito'”, conta a vendedora P. De O., 27 anos, que durante dois anos visitou o irmão preso todos os finais de semana. “Sem contar quando pedem para você abrir seus órgãos genitais com as mãos. Tem lugar que tem até espelho. É tudo para humilhar, para constranger”, afirma P.”.
A luta “pelo fim da visita vexatória” nos presídios, promovida pela organização não governamental internacional Conectas-Direitos Humanos, é digna de irrestrito apoio. Nas mãos do governador de São Paulo está o projeto de lei 797/13 (autoria do deputado José Bittencourt), que determina que a revista nos visitantes seja feita apenas por meio de equipamentos eletrônicos ou outros meios que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado (bom senso inquestionável).
Este medieval procedimento (recordese que eram os padres inquisidores que vasculhavam as vaginas das “bruxas” para acharem sêmen do Diabo), quando usado fora da estrita e absoluta necessidade, é constitucional e internacionalmente vedado. A Conectas afirma que, em 2012, 3,5 milhões de pessoas tiraram as roupas e abriram seus órgãos genitais com as mãos para serem revistadas em seus orifícios, sob alegação de barrar a entrada de armas, drogas e celulares nas celas.
Dados colhidos pela Defensoria Pública mostram, entretanto, que em apenas 0,02% dos casos foram encontrados materiais proibidos; “é evidente que esta prática abusiva é usada como mais uma forma de punição contra os presos”. Milhares de mães, filhas, irmãs e esposas de pessoas presas são obrigadas a se despir completamente, agachar três vezes sobre um espelho, contrair os músculos e abrir com as mãos o ânus e a vagina para que funcionários do Estado possam realizar a revista. Bebês de colo, idosas e mulheres com dificuldade de locomoção são todas massacradas da mesma forma.
O senado aprovou recentemente lei proibindo a revista vexatória, tendo enviado o projeto para a Câmara dos Deputados. Legislativamente estamos avançando para adequar nosso ordenamento jurídico ao que já está previsto na CF e no direito internacional. Lamentase que se tenha que regulamentar exaustivamente o assunto, para se pôr fim a uma prática medieval e cruel, que é puro exercício do estado de polícia (medidas administrativas de coerção direta).
O regimento interno da Secretaria de Administração Penitenciária (de SP) diz que a revista íntima pode ser feita “quando necessário” e “em local reservado, por pessoa do mesmo sexo, preservadas a honra e a dignidade do revistado”. A exceção (“quando necessário”) virou regra. Aqui está o abominável abuso, exercido em todo território nacional. O que dizem as normas já existentes no Estado de direito?
A CF (art. 5º, inc. III) diz que “ninguém pode ser submetido a tortura ou a tratamento cruel ou desumano”. A dignidade humana, de outro lado, é o valorsíntese do nosso Estado constitucional de direito (art. 1º, III, da CF).
No plano internacional, várias são as normas jurídicas vigentes, destacandose as dos artigos 5º (que proíbe medida degradante ou tortura assim como a transcendência da pena para outras pessoas), 11 (proteção da privacidade, da honra e da dignidade) e 19 (proteção das crianças), 24 (proteção das mulheres) da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Esses direitos não podem ser suspensos nem sequer em circunstâncias extremas (art. 27.2). O exercício da autoridade pública, de outro lado, tem obrigação de respeitar os limites do Estado de direito, que são superiores ao poder do Estado e inerentes à dignidade humana (art. 1.1 da CADH). Para se estabelecer a inspeção vaginal (diz a jurisprudência internacional) deve o Estado cumprir quatro condições: (a) absoluta necessidade; (b) inexistência de nenhuma outra alternativa; (c) ordem judicial (em princípio); (d) concretização unicamente por profissionais
da saúde pública.
Qualquer prática estatal abusiva, fora da estrita necessidade, é tirânica (já dizia Montesquieu, secundado por Beccaria). A Idade Média ainda não acabou. O malleus maleficarum ainda não desapareceu. Estejamos atentos.
Luiz Flávio Gomes, é jurista e diretor presidente do Instituto Avante Brasil.