Robotização, capitalismo e os famintos

Arquivado em:
Publicado Quarta, 22 de Abril de 2015 às 12:00, por: CdB
DIRETO-CONVIDADO22.jpg
Colunista Tarcísio Lage mostra que a robotização poderia acabar com a fome no mundo, se o capitalismo quisesse
Ford, quando inventou a cadeia de montagem na primeira década do século passado, aumentou o rendimento do trabalho e consequentemente a mais valia. Em termos marxistas, a mais valia é a parte que o trabalho acrescenta ao valor final da mercadoria não paga ao trabalhador. O avanço tecnológico, ao aumentar a eficiência do operário, eleva ao mesmo tempo a mais valia e faz aumentar, consequentemente, a distância entre a riqueza da burguesia em relação à melhoria das condições econômicas da classe operária. Agora que a cadeia de montagem já completou 100 anos ela parece brincadeira diante das novas tecnologias, da automação e robotização nos meios de produção e, principalmente, de serviços. Numa fábrica de automóveis, a linha de montagem atingiu o patamar onde o trabalhador foi praticamente excluído. São os robôs que fazem o serviço com uma eficiência que Henry Ford jamais imaginou. Mas há, aí, um problema. O trabalhador é também consumidor, mantendo a dinâmica do capitalismo. O robô, no entanto, não consome e condena praticamente à extinção o trabalho manual e míngua, em consequência, a força dos sindicatos como foram concebidos no auge da revolução industrial. O eixo do mercado de trabalho transferiu-se para os escritórios, para os trabalhadores de colarinho branco que, em alguns casos, adquiriram praticamente status de classe média. Mas eles também estão em perigo. O desenvolvimento tecnológico desde os últimos anos do século passado vem adquirindo velocidade exponencial. O trabalho de escritório, antes realizado por um punhado de funcionários, é hoje executado por uns poucos que só precisam apertar as teclas de um computador. Fora o trabalho especializado, para o prosseguimento de maior desenvolvimento tecnológico, a demanda de força de trabalho está numa curva descendente. O que seria um grande avanço para a libertação do ser humano da condenação bíblica de comer o pão com o suor do rosto, transformou-se num pesadelo para manter o sistema que já deu o que tinha de dar. Para mante o nível do trabalho, o capitalismo desperdiça e cria empregos artificiais. Em países em vias de desenvolvimento, hoje chamados de emergentes, como é o caso do Brasil, não raras vezes, joga-se trabalho fora. Por exemplo, empregar três pessoas que atendem cada motorista no processo de abastecimento num posto de gasolina, quando isso já é feito, na maioria dos ditos países desenvolvidos, automaticamente, sem nenhum funcionário. Mas também no mundo altamente desenvolvido o desperdício é fundamental. O usa-e-joga-fora, ao mesmo tempo que não deixa cair a produção de bens de consumo, cria novos trabalhos para se livrar do acúmulo de lixo e de sua reciclagem, quando é possível. Numa cidade dos países desenvolvidos qualquer buraco que aparece na rua é tratado como se utilizasse um canhão para matar uma mosca. Destrói-se praticamente a rua inteira para consertar o buraco. Não é por nada que o setor da construção seja um dos mais corruptos no mundo inteiro. No entanto, vasta porcentagem da população ainda passa fome, os grandes produtores de grãos e de produtos pecuários (aí incluindo o Brasil) brigam entre si para vender suas safras, não raras vezes recorrendo-se à destruição de estoques. Países como a França tem estocadas montanhas de queijo. Na Holanda há um limite para a produção de leite. Se o fazendeiro ultrapassar a cota tem de jogar fora. E ainda não falamos da forma mais perversa de desperdício: a guerra. Na invasão do Iraque, por exemplo, além do interesse óbvio das petroleiras e das construtoras brigando pelos bilionários contratos para a reconstrução do país, foi a indústria bélica que abocanhou a parte do leão. Os gastos do Departamento de Defesa dos EUA superaram os 500 bilhões de dólares anuais, mais do que 3% do PIB do país. No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx dizia que o capitalismo já tinha criado, na época, maravilhas mais suntuosas e imponentes do que as pirâmides do Egito e as catedrais góticas. Henry Ford não tinha sequer nascido e todas as maravilhas tinham sido produzidas pela força de trabalho do proletariado em fábricas movidas por caldeiras a vapor com a queima de carvão. Hoje, as maravilhas que se criam eram na época impensáveis. Para se ter uma ideia do avanço exponencial da tecnologia, quando em 1969 o ser humano pisou na superfície da Lua, a NASA utilizava computadores que ocupavam uma sala inteira. Atualmente, qualquer laptop tem capacidade de memória e cálculo maior do que o computador da NASA. No famoso filme 2001, Uma Odisseia no Espaço de Kubrick, baseado no livro de Artuhr Clarke, Hall, o computador superinteligente, era um monstrengo de tamanho semelhante ao computador da NASA. O desenvolvimento assombroso da nano tecnologia já torna possível hoje o armazenamento do cérebro humano, a coisa mais complexa criada pela natureza que se tem notícia. O que nos interessa aqui, no entanto, é tentar entender o impacto desse extraordinário desenvolvimento tecnológico nos mecanismos do sistema capitalista. Sobram as condições para que a fome já estivesse banida do Planeta, mas a dinâmica do sistema levou a uma outra direção, a da concentração da renda numa proporção jamais pensada e, no mínimo, escandalosa. Uma pesquisa da organização OXFAM, apresentada no Fórum de Davos no ano passado, revela que 1% dos mais ricos possui riqueza igual à da metade da população mundial. Bill Gates, a segunda pessoa mais rica do mundo, se quisesse consumir sua riqueza teria de gastar 1 milhão de dólares por dia durante 218 anos. Enfim, é um absurdo que atualmente, segundo relatório da FAO divulgado no ano passado, ainda existam 805 milhões de pessoas passando fome no mundo, quando um simples impostos de pouco mais de 1% sobre as grandes fortunas poderia resolver o problema. Em termos proporcionais, 1 em cada 9 habitantes do Planeta passa fome. Quer dizer, as maravilhas criadas pelo capitalismo só estão ao alcance daqueles que os economistas definem como integrantes do mercado e que se concentram, evidentemente, nos países mais desenvolvidos. Há condições de sobra para suprir as necessidades básicas dos 7 bilhões de seres humanos do Planeta, mas isso não tem o menor interesse para o mercado. Um executivo holandês contou-me que numa roda de altos dirigentes empresarias discutia-se um furacão que matou milhares de pessoas em Bangladesh. Um deles comentou: “E fizeram alguma falta? É, não fizeram neste mundo globalizado com os adoradores do deus mercado no comando. No entanto, e isso não foi aqui suficientemente discutido, o protesto também se globaliza. Atualmente, numa velocidade que Marx nem poderia prever quando conclamou “operários de todos os países, uni-vos”. Como nada é eterno, um dia o capitalismo não vai conseguir superar uma de suas crises periódicas e o deus mercado vai para os livros de História representando um sistema que deu o que tinha de dar criando grandes maravilhas ao custo de suor, lágrima e sangue.
Tarcísio Lage, jornalista, escritor, começou na Última Hora de Belo Horizonte no início dos anos 60. Com o golpe de 1964 teve de deixar a cidade e o curso de Economia na UFMG.  Até 1969, quando foi condenado pela Injustiça Militar, trabalhou em várias redações do Rio e São Paulo. Participou da tentativa de renovação da revista O Cruzeiro e da reabertura da Folha de São Paulo, em 1968. Exilado no Chile no final de 1969, trabalhou, em seguida, em três emissoras internacionais: BBC de Londres, Rádio Suiça, em Berna, e Rádio Nederland, em Hilversum, na Holanda, onde vive atualmente.  As Tranças do Poder é seu último livro.

Direto da Redação é um fórum, editado pelo jornalista e escritor Rui Martins

Tags:
Edição digital

 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo