Saber comer, saber viver

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Publicado Quarta, 16 de Julho de 2003 às 04:07, por: CdB

Um dos pontos centrais do programa Fome Zero é a educação nutricional. Nós, brasileiros, somos analfabetos em matéria de nutrição. Não sabemos por que comemos, o que comemos, e os efeitos que os alimentos produzem em nosso organismo. Comemos motivados pelo olhar e pelo paladar. Sem noção do valor nutricional dos alimentos, corremos o risco de transformá-los em veneno, ingerindo gordura saturada em excesso ou mais açúcar que o corpo admite.

Os monges antigos sabiam que a moderação à mesa é condição para uma boa vida espiritual. Por isso recomendavam terminar a refeição sem saciar inteiramente o apetite. Nossa ansiedade, entretanto, leva-nos a nos empanturrar, com o agravante de comer sem mastigar com calma, como se o estômago exigisse pressa na captação do bolo alimentar. Assim, a química da saliva deixa de exercer a sua função de preparar uma ingestão saudável, e os dentes servem apenas para embelezar a boca.

Descobri o quanto somos analfabetos em matéria de nutrição ao visitar a China, onde ocorre o fenômeno contrário. Não é à toa que os orientais gostam de chá. A água quente facilita a digestão. ''Alfabetizados'' em matéria de nutrição, os chineses comem movidos mais pela saúde que pelo sabor.

Fui jantar num mosteiro budista de Pequim. O guia avisou que todo o cardápio era rigorosamente vegetariano. No entanto, comi camarões, carne fatiada, peixe ensopado. Ao final, perguntei ao guia se os monges haviam aberto uma exceção por tratar-se de uma delegação brasileira, eminentemente carnívora. Ele riu, chamou um dos monges e transmitiu a minha dúvida. O monge também sorriu e me levou de volta à mesa das travessas. Mostrou-me, então, que tudo aquilo era vegetal. Ao longo dos séculos, a culinária budista havia logrado preparar vegetais com aspecto e sabor de carnes! (Aprendi a fazer um quibe de soja que engana o paladar de meus amigos mais carnívoros).

Uma das maiores contradições que o Fome Zero encontra em matéria de educação nutricional reside na escola. Toda ela é pensada a partir de parâmetros pedagógicos: da disposição das carteiras na sala de aula ao modo como professores e funcionários se relacionam. Contudo, a pedagogia cessa à porta da cantina ou da lanchonete. Vende-se ali a mesma porcariada ofertada pelo camelô da esquina. Nem sanduíches naturais são encontrados. Quase tudo é produto industrializado rico em açúcares ou gordura saturada.

Ora, por que os alunos não cultivam uma horta na escola? Por que não plantam um pomar? Uma criança que não suporta verduras terá o seu tabu quebrado no dia em que encontrar, à mesa, a alface ou a couve que ela mesma plantou. No bojo dessa horticultura, outro referencial pedagógico estaria reduzindo o excessivo cartesianismo de nosso sistema escolar: o trabalho manual. Tão pouco se trabalha com as mãos na escola, que não me espantaria se só as cabeças dos alunos entrassem em sala de aula. O corpo poderia ficar do lado de fora. Pois neste país de tão longa e trágica história escravocrata, o trabalho com as mãos fica a cargo da multidão dos não escolarizados.

Será que cultos são aqueles que possuem diploma? Um torneiro-mecânico na presidência do Brasil ajuda a quebrar a preconceito. Mas é injustificável passar tantos anos em bancos escolares, como foi o meu caso, e sair sem saber cozinhar, lavar, passar, fazer em casa pequenos reparos hidráulicos ou elétricos, conhecer um mínimo de mecânica de carro.

No convento em que eu vivia em São Paulo, trabalha, como cozinheira, a Eliete. Possui uma vasta cultura culinária, embora tenha pouca escolaridade. Quem pode viver sem a cultura do outro: eu que estudei jornalismo, antropologia, filosofia e teologia, ou ela que domina a arte culinária? A resposta é óbvia, mas o nosso preconceito a torna menos evidente.

 Frei Betto é escritor e Assessor Especial da Presidência da República

Artigo publicado no Jornal Correio Braziliense (DF).

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