Por Maria Lúcia Dahl, do Rio de Janeiro:
Meu tio inesquecível...
Era o mais velho dos irmãos. Meu tio médico. Segundo ele, o único da família do ”contra”, por suas capciosas tendência à Esquerda.
Tratava todo mundo de graça e era adorado na Praça Gal Osório, onde morava.
Uma noite deu pra beber no botequim da esquina e foi assaltado por um negão de peixeira reluzente.
-Passa a carteira!
-Passa você, ora essa! Há anos que você me deve uma consulta!
O assaltante recolheu a arma assustado.
-Dr Jorge, o que é que o senhor tá fazendo na rua a uma hora dessas? Isso aqui é muito perigoso!
E deixou-se acompanhar até em casa pelo ladrão com promessas de não mais escapar de madrugada, da mulher portuguesa e de maneirar no conhaque por causa da saúde.
Irritado com a carolice da sogra, que toda manhã saía de preto, pra pegar a missa das cinco, abriu a porta da rua e fez um escarcéu acordando os vizinhos.
-Isso é hora de voltar da farra, Dona Milú? Cinco horas da manhã! Chega a estar de olheiras!Que vergonha, na sua idade!
-O que é isso, Jorginho, o que os vizinhos vão pensar de mim?
-Que a senhora é uma velha gaiteira que passa a noite na rua e toda manhã vem me pedir pra abrir a porta!. Fique sabendo que é a última vez! Tudo tem limite, Dona Milú! Tudo tem limite!
E voltou pra cama vingado de todos os santos, aos quais tinha verdadeira ojeriza, enquanto a sogra, horrorizada, fazia o sinal da cruz.
Não tinha filhos.
E quando nós, sobrinhos, exagerávamos na excitação dos jogos e brincadeiras infantis, nos colocava em cima de armários diferentes até que nos acalmássemos e pudéssemos voltar a brincar.
Uma vez a sogra, carola, foi nos fazer companhia lá em cima, sacudindo os pezinhos em forma de protesto.
-Só desce quando largar esse terço, pronto. Todo mundo quietinho!
Por tudo isso, nós, sobrinhos, o chamávamos de Tio Bagunça.
Irrequieto, irreverente, a inteligência aguda despontando nos solitários olhos azuis, tentando escapar eternamente à mediocridade portuguesa ao redor.
Fugia pra beber, e uma vez viu uma moça de expressão vingativa pegar o telefone do bar. Prestou atenção na conversa.
-Alô? É a senhora do Doutor Augusto Seabra? Aqui quem está falando é a amante do seu marido.
Assim que a mulher desligou, meu tio procurou o nome do amante no catálogo e telefonou pra esposa traída.
-É a senhora do Dr. Seabra? Por favor, me desculpe...É que minha companheira se excedeu na bebida, aqui no bar...Ligou pra qualquer número e fez uma brincadeira de mau gosto.É bebedeira, coitada, nem conhece o seu marido...
Nunca saí do seu consultório com um parecer pessimista, ao contrário dos outros médicos que viviam me fazendo proibições.
-Deixa a menina comer chocolate, meu Deus!
-E as urticárias,Jorginho?Argumentava minha mãe, baseada no diagnóstico nazista de um médico alemão, responsáveis por minha atitude complacentemente masoquista nas festas de aniversário, ao recusar bolos e brigadeiros de chocolate, comprazendo-me em protagonizar o muito aplaudido papel de vítima, o que veio me custar anos de análise mais tarde.
- Que urticárias, Regina? Isso é mordida de pulga. Essa menina só dorme agarrada com os cachorros!
-O que é que eu dou pra ela então, Jorginho?
-Um antídoto. Passa na Kopenhagen e compra uma caixa de língua de gato.
Era um otimista pra desespero de minha tia-avó, hipocondríaca convicta e orgulhosa de suas quinze operações que costumava descrever com detalhes.
-Você não tem nada, Mathilde.
-Como não tenho?E o que eu faço com essas insuportáveis dores nas costas?
Tio Bagunça abriu, pacientemente, a gaveta da escrivaninha, pegou o receituário sob os olhos atentos da doente imaginária e prescreveu na pagina retirada do bloco.
-Vai plantar batatas.
Por isso intuí o pior quando se assustou com a diabete de papai, depois de sua alta e repentina alta de açúcar.
-Pára de chorar, menina! Teu pai não tem nada de grave.
Consolava-me ingenuamente minha mãe.
-Tem sim, mamãe. Eu vi a cara do Tio Bagunça...
E foi a ele que me agarrei no hospital, em meio a uma sisuda junta médica, pra mais tarde perde-lo da mesma diabete que levou papai, num inesquecível réveillon, cuja mesa posta esperava lá em casa com sua favorita torta de nozes.
Direto da Redação, editado pelo jornalista Rui Martins.