Ocorre que a narrativa do sonho ainda não havia terminado. No final, depois de examinar profundamente a vida dos dois e de pesar os pecados e virtudes de cada um, Deus ordenou:
- Agora, que um lamba o outro!
Na cena do festival os dois bonecos colocam para fora uma enorme língua e, numa cena escatológica e violenta, se lambem mutuamente como Deus ordenara.
Luta indígena
O espetáculo em Charleville, que durou uma hora, foi apresentado para uma sala lotada por cerca de 400 pessoas de mais de 40 nacionalidades. Os bonecos falaram português, mas uma tradução simultânea foi feita ao francês por um certo titiriteiro conhecido como José Freire Bigodinho. Duas outras apresentações aconteceram na Casa do Brasil, em Paris, e outras duas em Madri e Lisboa.
- Por que um tema peruano para representar o Brasil?
Diante da pergunta, o diretor do Teatro Dada, Euclides Coelho de Souza, responsável pela adaptação do conto, explicou:
- O tema do colonialismo é universal. Na América Latina, a opressão colonial significou a tentativa permanente de esmagamento e destruição das culturas indígenas, que resistiram e continuam resistindo ainda hoje contra a invasão de seus territórios e contra a discriminação de suas línguas e culturas. Escolher um tema peruano foi ainda uma forma de homenagear os povos andinos, com quem convivemos durante mais de sete anos em que estivemos exilados no Peru e proibidos de representar nossas peças no Brasil.
Euclides nasceu em Roraima, onde passou a infância convivendo de perto com as injustiças e o preconceito contra os povos Makuxi, Wapixana, Ingaricó e Taurepang. Nos anos 1950, cursou o secundário em Manaus, para onde desciam muitos índios do Rio Negro. Este convívio despertou uma sensibilidade que foi amadurecida na Bolívia e no Peru, onde viveu exilado durante vários anos, fazendo teatro de bonecos.
O Teatro de Bonecos Dadá, composto por Euclides e Adair Chevonika, que é paranaense, percorreu diversos países no exílio: Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, para fixar-se finalmente no Peru. Dedicaram toda sua vida ao teatro de bonecos e, na volta do exílio, voltaram a apresentar-se todos os domingos no Teatro do Piá, em Curitiba.
Com os títeres, eles trabalharam com um público adulto, em processo de alfabetização e conscientização, tanto no Chile como no Peru. Apesar dos 50 bonecos coloridos e belos apresentados na peça com técnicas de luva, de vareta e outras, manipulados com refinamento, Euclides faz questão de enfatizar que é contra a preocupação tecnicista excessiva que possa levar a um descuido com a mensagem, o que ocorre algumas vezes com esse tipo de teatro.
- A técnica do teatro de bonecos é fundamental, porque sem ela não se pode dizer nada. É importante que se faça um teatro o mais refinado possível; no entanto, não podemos esquecer que a técnica tem de estar subordinada a uma mensagem, a um conteúdo, que reflita as emoções humanas, as lutas cotidianas a alegria, a dor, o sofrimento, o humor, os problemas concretos de uma cultura.
A voz do índio
Euclides explica ainda que esta peça, quando representada no Festival de Curitiba, provocou grande polêmica. Uns acharam que era "revolucionária", mas muito dura com a Igreja, na medida em que o patrão usa as orações para cristalizar sua dominação. Outros chegaram a classificá-la de "reacionária", argumentando que a justiça não é feita pelos próprios povos indígenas, que transferem para uma entidade de fora, o próprio Deus, o ajuste de contas.
Euclides e Adair respondem que o objetivo preciso da peça é justamente abrir a discussão e eles se limitaram apenas a recriar um conto indígena anônimo, que circula nos Andes e foi elaborado depois da chegada dos espanhóis.
- A nossa finalidade é abrir espaço para a voz do índio, tal como ela se apresenta hoje, denunciando o colonialismo. Queremos sensibilizar as pessoas, através do teatro de bonecos, para uma solidariedade maior com os povos indígenas de nossa América.
P.S.1 Versão ligeiramente modificada da que foi publicada originalmente no jornal PORANTIM - Em defesa da causa indígena. Brasília. Ano V, Nº 45, novembro de 1982.
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=hemeroindio&pagfis=3652&pesq=
P.S. 2 - "O Índio virou pó de café?" é o título do livro de Marcelo Lemos lançado nessa sexta-feira, 15 de julho de 2016, na Casa da Ciência da UFRJ, numa mesa redonda, seguida de sessão de autógrafos. Trata-se de uma versão atualizada da dissertação de mestrado defendida em 2004. Analisa a resistência dos índios Puri, Coroado e outros no século XIX frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (RJ e MG). A pesquisa foi orientada em 2004 pelo historiador Marco Morel da UERJ que prefaciou o livro, em cuja orelha, redigi essa pequena nota: "Dona Elisa, lá no Amazonas, usa o pó de café misturado com farinha de ossos e de sangue para adubar o solo do quintal onde cultiva plantas. Foi isso que Marcelo Sant´Ana Lemos fez. Localizou nos arquivos documentos inéditos e os analisou criticamente para fertilizar a resistência dos índios diante da expansão cafeeira no Vale do Paraíba, do esbulho de suas terras e da extrema violência contra sua integridade física, cultura, língua. O índio virou pó de café? O autor do livro que você vai ler retira o véu que encobria os Coroado, os Puri e os Coropó, colocando-os outra vez no mapa do Rio de Janeiro.
José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.