Moro x Lula, deus e o diabo na terra do sol

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Publicado Terça, 09 de Maio de 2017 às 12:00, por: CdB
O depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao juiz Sérgio Moro, marcado para a próxima 4ª feira (10) em Curitiba, desperta nos aficionados de ambos expectativa semelhante à da molecada de outrora quando, nas matinês de domingo, estava prestes a começar o duelo ao amanhecer na rua principal, momento culminante de muitos bangue-bangues de então.

Por Celso Lungaretti, de São Paulo:

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Encontro digno de un western, episódio digno  de filmes de Glauber Rocha ou de uma peça de Molière, O Tartufo?
A coisa chegou a tal ponto que Moro divulgou uma mensagem em vídeo pedindo à sua torcida organizada para se desmobilizar. Eis um trecho:
"Eu tenho ouvido que muita gente que apoia a Operação Lava Jato pretende vir a Curitiba manifestar esse apoio... 
Eu diria o seguinte, esse apoio sempre foi importante, mas nessa data ele não é necessário. Tudo que se quer evitar, nessa data, é alguma espécie de confusão e conflito. 
Acima de tudo, não quero que ninguém se machuque em eventual discussão ou conflito nessa data. Por isso, a minha sugestão é a de que não venham. Não precisa. Deixem a Justiça fazer o seu trabalho".
A mim, contudo, o espetáculo da próxima 4ª feira fez lembrar um filme bem diferente dos westerns: um clássico do cinema político italiano!

Se o leitor estranhar, dou-lhe toda razão. É que, como o Raul Seixas, devo ser mesmo um chato. Pelo menos no sentido desta estrofe de Ouro de Tolo, o primeiro grande sucesso do Raulzito: "Mas que sujeito chato sou eu/ Que não acha nada engraçado/ Macaco, praia, carro/ Jornal, tobogã/ Eu acho tudo isso um saco". 
 

Tenho certeza de que, vivo, ele estaria achando também a torcida contra e a favor da Lava-Jato um saco...
Estes atores até que são esforçados...
E a que filme italiano, afinal, me refiro? A Esse Crime Chamado Justiça (1971), o título brasileiro de In Nome Del Popolo Italiano, do grande Dino Risi (*).

Diretor de obras-primas como Perfume de Mulher (a distância entre o original italiano e o remake estadunidense é a mesma que existe entre o genial Vittorio Gassman e o correto Al Pacino), Risi foi mestre das comédias impregnadas de críticas sociais e uma visão compassiva da realidade.

Aliás, o Perfume de Mulher de 1974 contém um dos maiores momentos de um ator que vi em toda a vida: é simplesmente de arrepiar a metamorfose do militar cego quando, abalado por haver vacilado e descumprido o pacto de suicídio com outro veterano, não consegue mais manter a postura agressiva que utilizava como defesa desde que uma bomba lhe explodira na cara, tirando sua visão (por não suportar que sentissem pena dele, a todos afastava com cafajestadas e grosserias).

Não dá sequer para imaginarmos um ator que expressasse, com a mesma dignidade de Gassman, a desorientação e fragilidade do personagem quando finalmente cai sua máscara.
...mas não chegam nem perto destes!

Assim como não nos vem à cabeça ninguém melhor do que Marlon Brando para transmitir a profunda repulsa pela desumanidade que inspira a frase "o horror, o horror!", em Apocalypse Now; ou outro que não Gregory Peck fazendo as alegações finais da defesa do negro injustiçado em O Sol É Para Todos.

Foi também Gassman quem interpretou o repulsivo empresário de Esse Crime Chamado Justiça. É investigado por um procurador honesto (Ugo Tognazzi), por suspeita de haver assassinado a amante.

No curso do inquérito, vêm à tona sucessivos casos de pessoas destruídas pela ganância e insensibilidade predatórias do empresário.

Finalmente, quando tudo aponta para sua culpa, cai nas mãos do procurador uma carta que comprova não ter havido crime, mas sim suicídio.
 
 
Não haveria lugar melhor que um tribunal para tal espetáculo?
Então, depois de haver seguido fielmente as regras durante toda a sua carreira, o funcionário decide fazer aquela que crê ser a verdadeira justiça: suprime a prova, para que, por linhas tortas, seja punido um cidadão muito nocivo a seus semelhantes.

Tenho a impressão de que Moro se vê exatamente como o procurador honesto. E que ele tenha do Lula uma imagem tão negativa (embora por outros motivos) quanto a que o personagem do Ugo Tognazzi tinha do personagem do Vittorio Gassman.

Sou totalmente contrário ao maniqueísmo, como deve ser qualquer revolucionário que conheça o bê-a-bá do marxismo e do anarquismo. Então, desprezo as emoções primárias do big gundown e a banalidade das teorias da conspiração que pululam de lado a lado. 

Vejo no episódio da próxima 4ª feira apenas o encontro de dois personagens que geralmente agiram de acordo com seus valores, mas que, em determinadas circunstâncias, sentiram-se no direito de serem infiéis a eles, ultrapassando limites que jamais deveriam ter ultrapassado.
 
 
Celso Lungaretti, jornalista e escritor, foi resistente à ditadura militar ainda secundarista e participou da Vanguarda Popular Revolucionária. Preso e processado, escreveu o livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial). Tem um ativo blog com esse mesmo título.

Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.

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