Cuba

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Publicado Sexta, 25 de Agosto de 2006 às 08:45, por: CdB

Cuba está entrando num processo de transição política cuja complexidade decorre da natureza e duração do regime ainda em vigor, do peso da personalidade de Fidel Castro e da ameaça de intervenção externa por parte dos EUA. Apesar de muitas das promessas da revolução não se terem cumprido e de serem ainda hoje visíveis na sociedade cubana alguns traços do período pré-revolucionário, a revolução cubana continua a ser uma referência fortemente enraizada no imaginário político para muitos dos que lutam contra a injustiça social. Nem os mais ferozes críticos de Cuba ousam equiparar Fidel a Pinochet ou o regime de Cuba ao da Arábia Saudita. Quais as razões da perplexidade que Cuba suscita em alguns e do fascínio em outros?

A revolução cubana foi um dos acontecimentos mais notáveis da segunda metade do século XX. Um país empobrecido pela rapina das oligarquias, sujeito à constante tutela norte-americana ciosa em salvaguardar os seus vultuosos interesses econômicos, transformado num imenso bordel e paraíso de máfias e governado por um ditador corrupto, Fulgêncio Batista, revolta-se em armas em nome dos ideais igualitários e humanísticos em que se salientam a reforma agrária, o efetivo acesso de todos os cubanos aos direitos à saúde, à educação e à habitação e a luta contra a dominação estrangeira.

O êxito da revolução foi uma luz de esperança para milhões de latino-americanos oprimidos e explorados, ao mesmo tempo que deixou os EUA estupefatos perante a ousadia do desafio ao seu domínio regional por parte de um pequeno país, situado a poucas dezenas de quilômetros. A reação não se fez esperar e dura até hoje: invasão (Baía dos Porcos), tentativas de assassinato de Fidel Castro (que incluíram lapiseiras com tinta venenosa e charutos explosivos), guerra biológica (a CIA contaminou a ilha com germens de febre suína africana o que obrigou os cubanos a matar 500 mil porcos), bloqueios militares e o embargo econômico condenado pelas Nações Unidas desde o início. Apesar disso, o povo cubano resistiu com êxito e é espantoso que o tenha feito perante um inimigo tão poderoso e tão pouco escrupuloso nos seus meios de ingerência.

O endurecimento ideológico, a dependência da URSS e o seu fim brusco, o embargo e a ameaça sempre iminente de uma invasão norte-americana impediram que muitas das promessas de revolução se realizassem, nomeadamente a democracia representativa e participativa e a melhoria do bem estar econômico e social para toda a população. Mesmo assim são conhecidos os êxitos na área da saúde e da educação. A Casa das Américas é uma das instituições culturais mais notáveis de todo o continente, e ao longo de várias décadas a política externa de Cuba pautou-se pela solidariedade internacionalista, de que são exemplo os médicos cubanos que hoje trabalham em muitos países do chamado Terceiro Mundo, e o apoio a Angola na sua luta contra a invasão da África do Sul do apartheid.

Apesar do silêncio público, Cuba é hoje um cadinho fervilhante de idéias sobre a transição. E, pese embora as muitas diferenças entre elas, dois princípios as unem: a defesa intransigente da independência nacional; a busca de uma solução democrática que garanta a continuidade e o aprofundamento das conquistas da revolução. É difícil encontrar no mundo povo mais cioso da sua independência e da sua dignidade. E talvez aqui resida a contribuição mais importante de Fidel Castro para a luta dos povos por uma sociedade mais justa: a dignidade e a altivez de dizer Não à arrogância dos mais fortes. Aqui reside também o fascínio que a revolução cubana continua a exercer.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

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