Rio de Janeiro, 20 de Dezembro de 2025

A minha primeira bola de futebol

Por Urariano Mota - Até onde lembra minha memória, o que lhes vou contar agora é de quando eu tinha apenas oito anos, quando ganhei minha primeira bola da futebol.

Sábado, 14 de Junho de 2014 às 12:08, por: CdB
DIRETO-8.jpg
Colunista recorda quando ganhou uma verdadeira bola de futebol e do treino do qual imaginou participar
Até onde lembra a memória, por mais seletiva de momentos honrosos que ela, trapaceira, ergue à consciência, um momento é inesquecível das minhas ações no futebol. Por mais seletivas jogadas das quais a memória faz um grande time, um dream team, esta que lhes vou contar agora é a número 10, a do rei, a rainha das rainhas, de todas. Em resumo, já lhes digo, eu tinha oito anos. Nessa idade em que nascem os craques, em que já desponta neles o talento, eu, como todos os craques, adorava futebol. Adorar, no caso, quer dizer não pensar nem sonhar com outra coisa: é jogar, jogar, dentro de campo, fora de campo, com bola, sem bola, como tempos depois demonstraria Tostão, na seleção brasileira de 1970 no México. Eu havia ganhado uma bola em 1958, quando o Brasil fora campeão da Copa do Mundo na Suécia, lembro bem. O meu presente de aniversário, que no México chamariam de cumpleaños, havia sido uma bola de látex, de borracha cinza, boa, grande, um presente e um regalo superior para todos os meninos que jogavam com bola de meia, que ficava redonda à custa de papéis, panos velhos e trapos socados. Assim posto, assim orgulhoso e contente, dirigi-me à rua, que no meu caso era sair para o beco em que eu morava, percorrê-lo e atingir a esquina, onde em frente a um prédio em construção reuniam-se os meninos para jogar com bola de meia e inventar o impossível, fazê-la rolar como rolam as bolas de borracha ou as inatingíveis de couro. Mas nesse dia resistente na memória eu era a seleção, eu era maior que Didi, Pelé, Vavá, aqueles que a música nos rádios cantavam “bailaram lá na Europa, e a Copa vem pra cá”. Sim, eu era esse grau superior, acredito que em todas as nações do planeta, eu era a maior autoridade e espetáculo, o majestoso e supremo dono da bola. Que para ser dono não é preciso nenhum dom, que em qualquer sociedade da terra, em qualquer tempo, isto é histórico, substitui o dom de jogar bola. Me cercaram-me. Os meninos me cercaram. E eu, em lugar de abarcar sozinho o troféu, orgulhoso, besta, lhes dizia, mirem a maravilha, e eles, com sede, mais que miravam, executavam malabarismos com a minha bola, para me assegurar, aduladores, que bola como aquela no mundo inteiro não havia, nunca e jamais. Eu acreditava, diria mesmo, todos acreditávamos, até mesmo os cruéis e traiçoeiros aduladores. Bola e dono da bola como aqueles no mundo inteiro não havia. Nisso eu acreditava e hoje mais que antes possuo a certeza. Então, terminados os cumprimentos bajuladores, então, para melhor encantamento, decidimos jogar. Sim, para que desejamos e desejávamos todos uma bola? Para exibi-la e recolhê-la depois? Não, não, e definitivamente não. A frente do prédio em construção era boa. À margem da Avenida Beberibe, como a boca de um funil, cujo canal era a estreita passagem do beco, que se chamava, e ainda se chama, Travessa da Rua Alegre, a frente do prédio era de terreno bom e macio, com torneira baixa, para despejar água usada no cimento da construção do prédio. E por isso e por vontade, gana, que dizíamos “secura”, naquela manhã de 1958 resolvemos jogar, melhor, resolvemos todos estrear um novo jogo com a minha belíssima bola de presente. Novo como nunca se vira até então, e até hoje, acredito. E aqui solicito ao leitor uma suspensão. E lhe digo: nada do que lhe vou contar, nada do que escrevi até aqui, é mentira, invencionice ou invenção. Será fantástico, eu bem sei, será extraordinário, bem tenho a consciência. Mas acredite, meu amigo, meu leitor e meu cúmplice: o extraordinário, o fantástico, o inusitado e absurdo é o real. Deus e os duendes, quando são camaradas, é que permitem à gente contar. Pois bem, resolvemos jogar. Era um costume então entre os meninos, não sei se perdura até hoje, usar o expediente que chamávamos de “tirar o time”. Ou seja, os líderes naturais dos meninos, que podiam ser os melhores jogadores, ou os mais ricos, ou os menos miseráveis, os mais fortes, ou os mais valentes, escolhiam aqueles que iriam jogar em seu time. Assim estabelecidos, os líderes escolhiam, com um risco no chão, na terra do campo, os dois times, com a frase, com o mantra: - Esse é meu. - Esse é meu. - Esse é meu, esse é teu.... Quando ocorria de um bom jogador ser disputado por ambos os líderes, oferecia-se um menino ruim de bola, como um jogador a mais no time que ficava sem o seu Pelé. Compensavam. - Nêgo. - Nêgo é meu! - Você pode ficar com Dirico, a mais. - Essa ruindade eu não quero não. - Dirico é ruim, é? Ele sabe marcar, ele não deixa ninguém jogar. - Então fica com ele! - Tu só pensa em ganhar.... Pode vir, Dirico. Os excluídos, assim incluídos, faziam ponto de honra em transformar a sua desonrosa escalação em vitória do time que o abrigava. De preferência, derrubando, de todas as formas e maneiras, o Nêgo. Mas como eu não me chamava Dirico, porque eu era o titular absoluto da seleção nesse dia, me deixei acompanhar sonolento, entediado, a escalação dos dois grandes times: - Esse é meu... - Esse é teu... - Pronto. Vamos jogar. Então eu, o sonolento, ainda meio tonto, acordei. - E eu? Em que time eu jogo? Então o mais sábio, o mais inteligente e sabido líder, com ar de negociador norte-americano em terras de petróleo, me disse, com a voz terna, aveludada e conciliadora: - Depois. Isto de agora é só um treino. No jogo mesmo tu entra. Então jogaram. E eu, que não era Dirico, porque de maneira nenhuma poderia ser oferecido como uma compensação, naquele augusta hora, durante bons 60 minutos, assisti ao treino do jogo que viria. E como tudo tem um fim, para desgraça ou graça o treino acabou. E desta vez foi a minha vez de me acercar dos líderes: - Agora vamos jogar. - Olha, já é meio-dia. Amanhã tem mais. Vamos, turma? E me devolveram o meu troféu, o meu presente maravilhoso, a minha bola. Bem honestos, na devolução. E ficamos então a olhar, a mirar, sem acreditar no que víamos, sentados, para no chão não cair. Eu e a minha bola. Por isto digo e escrevo, sem muito orgulho, que a César o que é de César, e a Tostão o que é de Tostão. Porque nesse particular de jogo sem bola, em 1958 eu sou e fui o pioneiro, por me antecipar ao craque no México em 1970. Ninguém, nenhum dono da bola jamais jogou sem bola como este que lhes fala. Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance “Soledad no Recife”, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também “O filho renegado de Deus” e seu livro mais recente é o “Dicionário Amoroso do Recife”. Seu primeiro livro foi "Os Corações Futuristas", um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião.
Tags:
Edições digital e impressa