Rio de Janeiro, 20 de Março de 2025

Ainda estamos aqui

Por Rodrigo Barradas - Nesse país fundado por um golpe e em que golpes têm sido o normal, celebro Rubens Paiva e trago à memória o meu avô, militar e vítima da ditadura.

Segunda, 25 de Novembro de 2024 às 09:48, por: CdB

Nesse país fundado por um golpe e em que golpes têm sido o normal, celebro Rubens Paiva e trago à memória o meu avô, militar e vítima da ditadura.

Por Rodrigo Barradas – de Brasília

Para que servem os militares brasileiros? Pergunto isso, sendo neto de militar. Meu avô materno, Zwinglio Potts Valle o foi, talvez por uma oportunidade que ali surgiu, quando saiu de casa aos 16 anos, mentiu a idade e ingressou nas forças armadas.

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Nunca houve justiça

Era filho de militar rígido e conservador. Seu nome estranho, achamos que tenha sido em homenagem a Ulrich Zwingli, fundador do zwinglianismo, braço da reforma protestante na Suíça. E isso, talvez, já dê uma pista de como deveria ser na sua casa.

Nas forças armadas, colecionou uma carreira da qual eu tenho muito orgulho: de insubordinação e luta por direitos que o levariam, em 1964, aos porões da ditadura militar. Sim, meu avô foi militar e foi preso político.

Escrevo esse texto, justamente pelos últimos acontecimentos, da armação de um golpe que deu errado, em que o setor de elite do exército assassinaria o presidente Lula, seu vice, Alckmin e o presidente do STF, Alexandre de Moraes.

Escrevo isso depois de ver Ainda Estou Aqui, de Walter Salles e que conta a história de Rubens Paiva, sua família, sua corajosíssima esposa Eunice Paiva.

Escrevo isso porque é preciso contar histórias. Assim como meu avô contava aos netos. Aventuras que se tornaram mitos. Talvez, claro, tenhamos aumentado algumas coisas, afinal, nosso avô era um dos nossos heróis.

Granada explodiu

Como quando uma granada explodiu no convés do navio em que se encontrava, atirada por um militar que passava informações aos navios nazistas e, por isso, ele não foi combater os fascistas na Itália.

Sim, meu avô tinha cicatrizes de estilhaços de granada. Ou quando ele atirou num superior, porque numa discussão, esse superior iria atirar nele.

Ele colecionava essas histórias de embates, dentro das forças armadas, com seus superiores. Não aceitava humilhações. Nunca abaixava a cabeça!

E por isso, pode não parecer, mas meu avô foi um dos homens mais doces que já conheci. Numa época em que o homem da casa era um tirano, meu avô era doce.

Nunca encostou um dedo em algum dos filhos. Ao contrário, criou os filhos com uma certa liberdade que era estranha para a época, ainda mais numa família de um militar: Meu tio roqueiro que vivia pelo mundo. Minha tia lésbica. Minha tia mais nova, também pelo mundo. Minha mãe, acho que era a comportada da família.

Mas, para que servem mesmo os militares?

Quando o golpe de 1964 estourou, meu avô, que já trabalhava de forma mais burocrática no quartel não ficou calado. Em reuniões falava contra o regime militar. Ele não era e nunca foi um comunista de fato. Não fazia parte de grupo algum. Talvez fosse um socialista de alma. Era, sem dúvidas, um humanista.

Ainda assim, num domingo, um jipe do exército parou em frente sua casa, militares desceram e o chamaram. Disseram que precisavam dele no quartel. Ele foi, mas não voltou para casa naquele dia. No dia posterior. Nos próximos dias. Nada. Tinha desaparecido. Ninguém dava informações. Minha avó, com três filhos pequenos e grávida não sabia o que fazer.

Seu irmão, esse sim um comunista convicto, falou com o pai, ainda vivo, e foram tentar descobrir o que tinha acontecido. Descobriram que naquele mesmo dia, meu avô foi sequestrado, colocado em um avião e levado ao Rio de Janeiro, onde ficou preso por três meses.

Nesses três meses, as notícias correram o bairro onde moravam. Os vizinhos não falavam mais com a minha avó. As crianças não podiam brincar mais com a minha mãe e meus tios. O irmão do meu avô, o comunista, procurava escutas nos jarros da casa. E assim foi. O terror da incerteza era cruel.

Desapareceu, reapareceu

Três meses depois, da mesma forma que ele desapareceu, reapareceu. Do nada! Vinha subindo a rua assoviando seu assovio característico. E isso era a cara dele. Podia estar destroçado por dentro, mas não transpareceria para seus filhos. Minha mãe ouviu, correu para a rua e parece que o peso do mundo havia desaparecido. O pai estava de volta.

Gostaria que esse também tivesse sido o desfecho de Rubens Paiva. Não foi.

E é verdade que meu avô não saiu ileso. Quando morou por dois anos na minha casa, antes de falecer, eu já adolescente, me contou algumas coisas que haviam ocorrido quando esteve preso. Apesar do senso formalizado de que não havia tortura em 64, viu e ouviu muita coisa. Muita tortura. Não sofreu tortura física, até onde me contou, mas foram três meses de tortura psicológica. Coisas que se tornaram pesadelos e que seguiria com ele até o fim de sua vida.

Não conseguiu mais trabalhar no ambiente do exército. Desmaiava. Passava mal ao ver o desfile de 7 de setembro. Meu avô, um patriota e um dos homens mais doces que já vi na minha vida, que colocava o hino para tocar no aniversário da minha mãe, nascida nesse dia, não conseguia mais.

Morreu muitos e muitos anos depois de 1964. Mas nunca houve reparo. Nunca houve justiça. Faleceu antes da comissão da verdade. Faleceu sem saber que isso seria possível. Mas tenho certeza de que ele sabia que um golpe está sempre à espreita por aqui.

Então, para que serve os militares, mesmo? Fora a atuação na Itália contra os fascistas e, isso, fazendo sentido dependendo do ponto de vista, o que foi feito? O Brasil República que nasce de um golpe militar, como pode se desvencilhar dessa sombra de terror, de ódio, de violência? Desse mau agouro que é ser brasileiro, sempre esperando a notícia de uma próxima ruptura democrática?

De grupos violentíssimos, criados para matar, que acham que podem mandar na vida de todos? Para que serve essa casta, sempre a espreita, conspirando contra a normalidade e a paz, e que leva embora um valor altíssimo do erário público?

Virar República, para no lugar de monarcas termos senhores absolutistas da tortura, mudou o quê, de fato? 

Não pode haver espaço no Brasil, nunca mais, para Kids Pretos, assassinos em seus pijamas que fedem a naftalina. Generais e seus bafos podres, que arrotam o mau que vem de suas entranhas. Assassinos ilesos. Covardes e canalhas, como o Cabo Anselmo, Passarinho e Ustra. Gente que nunca pagou pelo o que fez.

Nunca mais! Por Rubens Paiva, por Dilma, por todos os mortos, assassinados, desaparecidos, torturados e estuprados em nome da ordem.

Por meu avô.

Nunca mais!

Sem anistia!

 

Rodrigo Barradas, é jornalista, trabalha desde 2012 com comunicação política e é autor de “Em Chamas”, livro de poesias.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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