Depois de ser exonerado por rebater críticas de Bolsonaro ao sistema de desmatamento na Amazônia, Ricardo Galvão incentiva pesquisadores a denunciarem tentativas de controle na ciência.
Por Redação, com DW - de Brasília
Para um auditório lotado, Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) narra os bastidores do embate com o governo Bolsonaro sobre os dados do desmatamento da Floresta Amazônica. Desde que o sistema detectou aumento da degradação florestal, a partir de junho, o Inpe virou alvo de ataques do presidente e do ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Na sexta-feira, Galvão está em casa: a conversa é com estudantes e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), onde ele é professor desde 1983, e para onde retorna após ser exonerado da diretoria do Inpe depois de rebater as críticas da cúpula do governo.
– Não podemos ficar calados – aconselhou à plateia. "Sempre que a ciência for atacada, temos que nos posicionar, independente da posição partidária”, disse.
No mesmo dia, na parte da manhã, Darcton Damião, militar da reserva da Aeronáutica, tomava posse à frente do Inpe, em São José dos Campos.
– A gente aguarda os primeiros passos do interventor. Vamos ver se haverá a próxima divulgação dos dados do desmatamento. Se isso não acontecer, está configurado o cerceamento à transparência e livre publicidade de dados científicos – comentou sobre o clima de tensão à DW Brasil Ivanil Elisário Barbosa, pesquisador do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) e diretor do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial (SindCT).
Dentre as principais falas de Galvão está a crítica ao sistema da tecnologia Planet, representado no Brasil pela empresa Santiago & Cintra, que será contratada pelo governo.
Segundo Galvão, as imagens que Salles usou para contestar os dados do Inpe foram feitas pela Planet. O então diretor teria pedido para ter acesso àquelas informações, elas seriam usadas para possíveis correções do sistema do instituto, caso fossem constatadas falhas.
– Salles disse que não poderia dar, que aquele trabalho havia sido feito gratuitamente pela Planet. O que nos preocupa muito são esses dados produzidos gratuitamente por uma empresa e apresentados como científicos – criticou o conflito de interesses.
Ninguém no ministério foi encontrado para comentar o caso.
Controle da ciência
Para Daniel Nepstad, pesquisador norte-americano que trabalha com a Amazônia há 30 anos, a tentativa de Bolsonaro de minar a credibilidade do Inpe ainda ressoa no mundo.
– O sistema de monitoramento da Floresta Amazônica ajudou a dar ao Brasil um papel de destaque no cenário internacional pela consistência dos dados produzidos e metodologia revisada por cientistas do mundo todo – avaliou em entrevista para à agência alemã de notícias Deutsche Welle (DW).
Nepstad considera "lamentável que o governo atual volte atrás e perca esse papel de liderança". O pesquisador afirma que a estratégia de negar a ciência e questionar resultados de pesquisas começou a ganhar maior proporção com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, figura admirada por Bolsonaro, segundo declaração do próprio presidente brasileiro.
– Cientistas que trabalhavam em instituições governamentais na área de mudanças climáticas também sofreram retaliações – comentou Nepstad sobre o cenário norte-americano.
Desde então, segundo o pesquisador, políticas ambientais estão sofrendo desmonte. Um exemplo é a legislação em torno da água: medidas adotadas por Trump reduziram o controle de poluentes que vão parar nos rios. "Isso vai causar muitos problemas de saúde e crianças podem morrer", citou como exemplo.
Os riscos para um país são grandes quando a ciência perde a autonomia, pontua José Goldemberg, que já foi ministro da Educação e secretário do Meio Ambiente nos anos 1990. "Ciência é a base de formulação de políticas públicas. Quando se mina a ciência, ficam prejudicadas as decisões do governo”, opina.
Ele cita um caso registrado na antiga União Soviética como exemplo. Nikolái Vavilov, botânico russo que estudava como deixar as plantas mais resistentes às secas para evitar catástrofes trazidas pela fome, foi considerado inimigo do Estado pelo ditador Josef Stalin e isolado profissionalmente. O banco de sementes formado por Vavilov, desprezado à época, é hoje um dos mais importantes da Rússia e permite pesquisas genéticas. "Mas tudo isso provocou muito atraso na Rússia nessa área de pesquisa”, menciona Goldemberg.
De volta às trevas?
Acioli Olivo, pesquisador do Inpe aposentado que atuou na instituição por 30 anos, lembra que dados do desmatamento já provocaram desconforto em governos anteriores, mas que as questões foram superadas.
A situação atual, por outro lado, é mais preocupante. "O Brasil não é um país de ponta em ciência e tecnologia, basta olhar o encolhimento dos orçamentos”, diz. Em 2004, R$ 4 bilhões foram destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, valor que saltou para R% 12 bilhões em 2013. Atualmente, ele é inferior a R$ 3 bilhões. "Mas, na área ambiental, somos exemplo: temos tecnologia, temos algoritmo, metodologia reconhecida”, afirma Olivo, citando artigos sobre o tema publicados em revistas renomadas como Nature e Science.
Ricardo Galvão também se diz preocupado com o futuro próximo. O recente corte de repasse anunciado pela Noruega ao Fundo Amazônia pode comprometer alguns projetos de pesquisa do Inpe financiados pelos recursos.
Ainda assim, o físico tenta demonstrar otimismo quando questionado se o país estaria de "volta às trevas”, numa referência à falta de dinheiro e censura da pesquisa científica, fazendo uma analogia com os tempos da Ditadura.
– Não. Porque a comunidade acadêmica e científica e o povo brasileiro não se calarão – responde.