Por Urariano Mota - Nestes dias em que o relatório da Comissão da Verdade foi entregue à presidenta Dilma, penso que é hora de retomar um texto em que registrei minha impressão de uma entrevista de Geraldo Vandré, na Globo News, a Geneton Moraes Neto. Lembro que ao ouvir as palavras, o tom da voz, ver a imagem, as linhas do rosto daquele que foi um dos grandes da nossa música popular, passei horas, alguns dias ruminando. Na verdade, até hoje me encontro assim, depois de quatro anos.
Colunista lembra a lavagem cerebral aplicada em Geraldo Vandré e até hoje não explicada
Nestes dias em que o relatório da Comissão da Verdade foi entregue à presidenta Dilma, penso que é hora de retomar um texto em que registrei minha impressão de uma entrevista de Geraldo Vandré, na Globo News, a Geneton Moraes Neto.
Lembro que ao ouvir as palavras, o tom da voz, ver a imagem, as linhas do rosto daquele que foi um dos grandes da nossa música popular, passei horas, alguns dias ruminando. Na verdade, até hoje me encontro assim, depois de quatro anos.
Em lugar do complexo “metida tenho a mão na consciência, e não falo se não verdades que me ensinou a viva experiência”, dos versos lapidares de Camões, procuro um nível mais baixo, que ainda assim está acima da minha altura. Tenho que ser justo, sensato e solidário em um só movimento. Mas como e onde a justa medida?
Enquanto escrevo ouço uma canção íntima, que ouvíamos na década de 70 como uma senha:
“Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar...”
E vêm outras vozes, cantando na gente, na mesma canção:
“Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”
Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? A ruminação continua, mas é imperioso avançar.
Já antes da entrevista na Globo News, eu esperava o tom sensacionalista, como é comum nos trabalhos de Geneton Moraes Neto. E assim foi na chamada:
“Geraldo Vandré quebra o silêncio em entrevista exclusiva
O Dossiê Globo News exibe neste sábado (25) uma entrevista histórica. Depois de quatro décadas de isolamento, o cantor e compositor que se transformou em um dos maiores enigmas da MPB resolve finalmente quebrar o silêncio, em entrevista exclusiva à Globo News. Autor de clássicos como Disparada e Pra Não Dizer que Falei das Flores esta, transformada em hino de manifestações contra a ditadura militar - Geraldo Vandré deu uma entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto no dia em que completava 75 anos de idade. Desde que voltou do exílio, no segundo semestre de 1973, ele não falava para a TV. Não perca o Dossiê Globo News, neste sábado (25), às 21h05”
Essas trombetas, eu sabia, não teriam um espetáculo conforme o anunciado. Mas estava escrito, não havia opção, eu caí, porque era preciso rever Geraldo Vandré. Resistia ainda uma esperança de que ele sobrevivesse à montagem e às perguntas desarrazoadas. No entanto, começou a entrevista e vimos: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo é que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia, há nele uma certa memória, montada, espertamente montada, como toda memória, mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos e precisos que jogavam fora a violência do regime militar.
E ocorre então a primeira ressalva, ao entrevistador, que só percebemos depois que o programa se fecha. Ocorre com Geneton o que é comum em 99% dos repórteres em ação na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, conheceram pessoas, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, angústia funda, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica da ditadura.
Mas pesquisar é bom, informar-se é melhor, aprender, pôr-se em posição humilde, atenta para os que viveram poderia e pode ser um modo de driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista até parecia que Vandré era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, até parecia. Poderia ser dito, essas são as “obras-primas” de Vandré. No entanto, houve um momento na entrevista em que Vandré refugou, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado, antimilitar na ditadura. Se o entrevistador houvesse ido além das duas obras-primas, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, que era direta como um soco:
“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora....”.
Mas isso ficou oculto das pessoas, dos jovens que viram o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse também uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade mesma. A saber, no caso do velhinho da entrevista: na pauta, havia que mostrar Vandré como um homem que sobreviveu à velha esquerda e hoje dá vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.
Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:
“...Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”
Regurgito para encerrar: Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que era possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, Vandré nos lembrava os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Geraldo Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua até hoje nas suas canções, ele não foi derrotado.
Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião.Direto da Redaçãoé um fórum de debates, do qual participam jornalistas de opiniões diferentes, dentro do espírito de democracia plural, editado, sem censura, pelo jornalista Rui Martins.
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