Uma inspiradíssima Lygia Fagundes Telles advertiu os leitores para o "perigo" que mora nos romances escritos em primeira pessoa, como "Dom Casmurro", de Machado de Assis, autor a quem rendeu calorosa homenagem neste sábado, durante a 2a. Festa Literária Internacional de Parati.
Foi essa a obra que ela escolheu para a mesa intitulada "Os Clássicos dos Clássicos" que dividiu com Moacyr Scliar e Luis Fernando Veríssimo, que substituiu o escritor João Ubaldo Ribeiro, originalmente previsto na programação.
Encenando trechos do romance que descreve o triângulo formado pelos personagens Bentinho-Capitu-Escobar, fazendo caretas e falando descontraidamente, ela arrancou risos e palmas da platéia em vários momentos da apresentação.
- O humor é a salvação da vida - disse ela, rindo de si mesma pelas diferentes conclusões que tirou ao ler o livro quatro vezes.
A discussão girou em torno do eterno tema: "afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?" Quando leu o romance pela primeira vez, aos 18 anos, ela considerou Bentinho um "Otelo dos trópicos", um "esquizofrênico", um "doente mental" que queria culpar a "pura" Capitu.
Na segunda vez, a advogada formada pela faculdade do Largo do São Francisco em São Paulo -- e com intenções de virar criminalista -- começou a desconfiar da personagem e convenceu-se que sim, a mulher com olhos de ressaca havia traído Bentinho com Escobar.
Na terceira, aproximou-se mais das primeiras conclusões. Ela releu o livro pela quarta vez para vir falar sobre o "enigma" literário em Parati.
Mas seria Bentinho, o Dom Casmurro que narra a história no final da vida, uma fonte confiável? A conclusão de Lygia é que não, e esse seria o mal de todos os livros narrados em primeira pessoa, pois tentam convencer o leitor de suas teses.
- Vocês desconfiem da primeira pessoa - disse ela para o público levantando o dedo indicador.
Como no caso de Bentinho, a primeira pessoa constitui um "narrador infiel."
- Na vida, além da gente ser manipulado por pessoas, os personagens manipulam a gente - observou.
Sobre a saga de amor, ciúme e eventualmente traição, ela disse que não se poderia esperar outra coisa senão o tormento de Dom Casmurro, ou Bentinho já no fim da vida, o amargo narrador da história que foi consumido pela dúvida ao longo da existência.
- O adultério é um inferno - concluiu.
Mais tarde, definiu a temática toda do livro citando um trecho de uma crônica recente de Arnaldo Jabor que arrancou gargalhadas da platéia.
- Só o corno conhece o verdadeiro amor - arrematou.
Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2025
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