A repetição de histórias sobre a sexualidade feminina que culminam em submissão nos leva a questionar até que ponto há narrativas de fato inovadoras.
Por Yasmin Morais – de Brasília
As mulheres têm dirigido alguns dos filmes mais interessantes dos últimos anos. Nesse cenário, diretoras europeias vêm se destacando ao explorar temas intrínsecos às experiências femininas, como envelhecimento, sexualidade e culpa. Entre elas, a holandesa Halina Reijn chama atenção com obras como Bodies, Bodies, Bodies (2022), de horror e mistério, o drama Instinct (2019) e o recente e polêmico Babygirl (2024), um thriller erótico.

Na trama, somos arrastados para o universo de Romy (Nicole Kidman), uma CEO brilhante que equilibra a vida profissional com as pressões familiares. Uma resposta pertinente às demandas contemporâneas por mais histórias de mulheres em espaços de poder. No decorrer do filme, entretanto, percebemos que o brilhantismo de Romy equilibra-se sobre um aspecto sombrio de sua história: ela, que cresceu em meio a seitas, esconde anseios sexuais pouco convencionais sob a fachada de mãe, esposa e profissional exemplar.
O filme se abre com o orgasmo de Romy dominando a tela, apenas para revelar, em seguida, que sua vida sexual com o marido Jacob (Antonio Banderas) não a satisfaz. Absorvida pela repressão, ela tenta manter a rotina até cruzar com Samuel (Harris Dickinson), um jovem que ela vê domando um cão agressivo na rua. Esse encontro movimenta sua estrutura de desejo, perturbando-a ainda mais ao descobrir que Samuel é um novo estagiário em sua empresa. Fantasias antes confinadas a pornôs fetichistas começam a invadir sua realidade.
Sexualidade feminina
As dinâmicas de poder entre Romy e Samuel são ambíguas. Como ele próprio sugere, ambos são como crianças experimentando limites e se permitindo mergulhar no desejo, uma mistura de fascínio e terror. No entanto, a narrativa recai em clichês previsíveis sobre a sexualidade feminina. A premissa de uma mulher poderosa que secretamente deseja ser submissa e ‘domesticada’ não é nova, e reafirma uma tese do masoquismo feminino amplamente explorada por cineastas em diferentes épocas.
Vivemos em uma sociedade cujas noções de sexualidade foram moldadas por milênios de dominação patriarcal. O imaginário cultural e o olhar masculino sobre o sexo perpetuam a ideia de que mulheres secretamente anseiam pela violência masculina ou pela submissão, e que está no cerne da ficção patriarcal sobre a sexualidade feminina.
A repetição de histórias que retratam a “liberdade sexual” culminando em submissão, abuso e autodestruição nos leva a questionar até que ponto narrativas verdadeiramente inovadoras estão sendo produzidas. O problema não está na expressão dos anseios femininos, mas na insistência em retratar todas as mulheres como secretamente submissas e na ausência de desejos que escapem à hiper-objetificação.
Babygirl dialoga com A Pianista (2001), de Michael Haneke, onde uma professora sexualmente reprimida envolve-se com um aluno mais jovem. Reijin afirma ter buscado um desfecho menos punitivo para sua protagonista, mas a abordagem permanece limitada.
O filme culmina em um confronto morno entre Samuel e Jacob, enquanto Romy enfrenta uma funcionária que encarna o clichê da girlboss feminista. O retorno à cena inicial reforça o caráter cíclico da trama, que entrega vulnerabilidade na construção de Romy e naturaliza a performance íntima da fantasia, mas peca ao escolher caminhos previsíveis e já desgastados no cinema.
Pessoalmente, espero por filmes que abordem a sexualidade feminina de forma verdadeiramente provocante, disruptiva e inspiradora. O mundo já tem babygirls demais.
Yasmin Morais, é escritora e jornalista. Integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.
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