Rio de Janeiro, 19 de Dezembro de 2025

Rita Cortez, presidente do IAB: “Não há crime maior do que atentar contra a democracia”

Rita Cortez, primeira mulher reeleita presidente do IAB, discute a importância da democracia, igualdade de gênero e atualizações no Código Civil em entrevista exclusiva.

Sexta, 19 de Dezembro de 2025 às 12:20, por: CdB

Segunda mulher a ocupar a presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e primeira a se reeleger para o cargo, a advogada trabalhista Rita Cortez assumiu pela terceira vez, em março de 2025, a condução da entidade jurídica mais antiga das Américas.

Por Ricardo Gouveia – do Rio de Janeiro

Também conhecido como Casa de Montezuma, em homenagem ao seu fundador e primeiro presidente, o IAB foi criado por meio de um Aviso Imperial assinado por Dom Pedro II, em 1843, com a finalidade de disciplinar o exercício da profissão e criar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em entrevista exclusiva ao Correio do Brasil, Rita Cortez fala sobre os principais temas atualmente debatidos e enfrentados pelo IAB, tais como a defesa da democracia, a adoção de políticas de igualdade de gênero e alterações no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e nas competências da Justiça do Trabalho.

Rita Cortez, presidente do IAB: “Não há crime maior do que atentar contra a democracia” | A advogada Rita Cortez preside uma das mais conceituadas instituições do Direito brasileiro
A advogada Rita Cortez preside uma das mais conceituadas instituições do Direito brasileiro
Leia, adiante, a íntegra da entrevista:

O IAB participou, recentemente, de uma audiência pública no Senado em que se debateu o PL 4/2025, que atualiza mais de 900 artigos do Código Civil e inclui 300 novos dispositivos. Quais serão os próximos passos do Instituto diante esta relevante mudança na legislação, em vigor desde 2002?

Criamos um grupo de trabalho especial para esquematizar a discussão de cada segmento do Código Civil que tenha sido alvo de modificações profundas e significativas pelo PL. São alterações que envolvem várias áreas do direito, fatos e negócios jurídicos, responsabilidade civil, obrigações e contratos. O grupo de trabalho verificará se os fundamentos jurídicos e institucionais da atualização do Código Civil são compatíveis com os parâmetros constitucionais de proteção da dignidade da pessoa humana. O grupo foi autorizado a formular diretrizes e recomendações que possam subsidiar a atuação institucional do IAB para o aperfeiçoamento das políticas públicas em cada área. Para isso, a coordenadora do grupo e presidente da nossa Comissão da Advocacia nos Tribunais Superiores e Órgãos de Controle convocará os presidentes e vice-presidentes das comissões de Direito do Consumidor, Imobiliário, Notarial, Empresarial, Digital, IA, Responsabilidade Civil e das Famílias e Sucessões, para organizarmos um calendário de debates semanais.

 

— O Instituto discutiu e aprovou o parecer elaborado por sua Comissão de Direito do Trabalho sugerindo mudanças no projeto de lei 1.472/22, que altera e amplia as competências da Justiça do Trabalho. Quais são as expectativas para o texto final dessa alteração legislativa?

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao promover uma confusão deliberada entre o trabalho intermediado, que denominamos terceirização da atividade-fim, e o trabalho em plataformas digitais, passou a desconsiderar princípios basilares do Direito do Trabalho. Com isso, ampliou indevidamente a configuração do trabalho autônomo e, como consequência, negou a existência do elemento central das relações de emprego: a subordinação, mesmo em contratos que apresentam características típicas da prestação de serviços subordinados.

Esse posicionamento, que legitima uma pejotização ilimitada, ou seja, a transformação de empregados em pessoas jurídicas individuais, causará prejuízos bilionários aos cofres do INSS. Estudos da FGV indicam que as perdas já se aproximam de bilhões de reais, em razão da migração massiva de contratos de trabalho para o modelo MEI, no qual o empregador está isento de contribuição previdenciária.

A consequência prática de admitir que contratos regidos pelo Direito Civil — isto é, contratos sem subordinação — afastem a competência constitucional da Justiça do Trabalho é a fragilização da proteção social do trabalhador, ainda que a competência material dessa Justiça, nos termos da própria Constituição Federal, no seu artigo 114, seja ampla. O IAB continuará atento às constantes transformações de toda ordem no mundo do trabalho, sem qualquer pretensão de dar respostas definitivas aos problemas delas decorrentes, como é o caso do trabalho em plataformas digitais.

Queremos construir por meio da atuação da Comissão de Direito do Trabalho e da Comissão de Direito Coletivo do Trabalho e Direito Sindical teses que ofereçam alguma esperança de superação dos retrocessos nos direitos sociais trabalhistas. Ou seja, teses que sigam a política do bem-estar e da justiça sociais como valores republicanos consagrados na Constituição Federal. Para isso, contaremos com os juristas trabalhistas filiados ao IAB que são mais sensíveis às questões atuais, tais como inovações tecnológicas e suas repercussões nas relações de trabalho, e contribuirão com a construção técnica e política de alternativas menos gravosas, até porque este é o nosso papel de vanguarda do Direito.

 

— Como o IAB vem lidando com as alterações que vêm sendo feitas no Código de Defesa do Consumidor com o propósito de alinhá-lo às mudanças na forma de consumo proporcionadas pela tecnologia?

Inicialmente quero ressaltar o nosso engajamento nas atividades em homenagem aos 35 anos do Código de Defesa do Consumidor. Em setembro deste ano, participamos da abertura do simpósio em comemoração ao aniversário do Código promovido pelo Instituto de Magistrados do Brasil e realizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O evento reuniu diversas autoridades dos meios jurídico e acadêmico para debater os avanços, as conquistas e os desafios da legislação que transformou as relações de consumo no país.

Com a atuação da nossa Comissão de Direito do Consumidor, incentivamos os nossos associados a refletirem sobre a atualização da lei, até porque entendemos que, após 35 anos, o CDC está pronto para receber modificações e aperfeiçoamentos que acompanhem os anseios da sociedade e os impactos das novas tecnologias. Portanto, a melhor forma de celebrar o marco de mais de três décadas é discutir os acertos e projetar os desafios de sua atualização.

Não há dúvida de que o CDC garantiu maior transparência e equilíbrio nas relações de consumo, consolidando-se como um verdadeiro paradigma na defesa da cidadania. Entre suas conquistas, destacam-se o reconhecimento de direitos básicos como o acesso a informações claras, a segurança, a proibição de práticas abusivas e a responsabilização das empresas por defeitos em produtos e serviços, princípios que agora precisam ser reafirmados e ampliados diante das novas realidades tecnológicas.

Nesse contexto, é fundamental considerar as mudanças trazidas pela digitalização, como o comércio eletrônico, os marketplaces, os contratos digitais, a proteção de dados pessoais, a inteligência artificial aplicada ao consumo e a crescente utilização de plataformas digitais para prestação de serviços. Essas transformações exigem que o CDC se adapte para que continue a garantir transparência, segurança e equilíbrio também no ambiente virtual.

 

— De que forma o IAB tem lutado pelo fortalecimento das políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero e enfrentado o crescimento alarmante do crime de feminicídio no país?

Entre os fatores que influenciam o crescimento da violência doméstica e das manifestações de intolerância, se destaca a assunção das responsabilidades pelas mulheres, levando-as a agir com maior independência e autonomia, o que não é suportado pelos homens que no passado eram considerados como únicos provedores e chefes das famílias. Em uma estrutura patriarcal como a nossa, o controle da sexualidade feminina, que é a expressão da prevalência do masculino sobre o feminino, transforma a casa em espaço considerado mais adequado e preferencialmente destinado às mulheres.

Estamos permanentemente colocando em debate as relações de gênero nas organizações sociais, por meio de inúmeros eventos, como seminários, congressos, conferências e colóquios nos quais confrontamos a distribuição de poder e a divisão do trabalho nos grupos familiares. A luta da mulher negra por igualdade de oportunidades no mercado de trabalho também tem sido objeto central de nossos debates. Na advocacia, não faltam relatos de prerrogativas profissionais violadas por racismo.

Nesse sentido, criamos um projeto voltado para a inclusão gradual de mais juristas negras como associadas de instituição. Na sociedade brasileira ainda persiste certo desprezo pelas reivindicações feministas voltadas à ampliação da participação política das mulheres, à igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, ao acesso à educação e à descriminalização do aborto, entre outras bandeiras que assumimos, nos últimos tempos, como institucionais. Falando um pouco sobre o nosso trabalho neste campo da igualdade de gênero, produzimos duas obras de referência, “Mulheres do IAB” e “Marcos Legais dos Direitos das Mulheres”, ambas organizadas e coordenadas pela nossa Comissão dos Direitos da Mulher.

A erradicação de todas as formas de discriminação, como consagração da igualdade social e política das pessoas é, ou ao menos deveria ser, compromisso de todos que zelam pelo Estado Democrático de Direito. Daí a relevância desse trabalho no IAB, que se traduz em conquistas internas, como a composição de uma diretoria formada majoritariamente por mulheres, incluindo mulheres negras. Com base no diálogo social e nas concertações das quais participa o Estado, podemos debater políticas públicas que incentivem a adoção de medidas voltadas à igualdade de gênero, colocando-as em pauta, apresentando sugestões sobre os avanços recentes da legislação protetiva nacional e internacional, principalmente combatendo todas as formas de violência contra as mulheres.

 

— Pela primeira vez na história do país, um ex-presidente da República e militares de alta patente foram condenados e presos por tentativa de golpe. Como a Casa de Montezuma tem atuado para resistir às ameaças à democracia brasileira?

A condenação de um ex-presidente e de militares de alta patente por tentativa de golpe demonstra que o Brasil está alcançando, gradativamente, maturidade no seu processo democrático e na defesa permanente do Estado de Direito. O IAB tem participado ativamente de atos e manifestações promovidos por entidades e instituições jurídico-políticas em defesa da democracia. Sempre que surgem episódios que buscam abalar a higidez do nosso sistema democrático ou que afrontem a Constituição, rechaçamos publicamente tais iniciativas por meio de notas institucionais da Presidência do IAB.

Um exemplo dessa participação foi o convite que fizemos para debate sobre Crises Políticas e a Reação do Estado Democrático de Direito, realizado durante a programação da 5ª Semana Victor Nunes Leal, em novembro último. Nesse encontro, diversos acadêmicos e especialistas jurídicos discutiram temas relacionados à democracia e à valorização do legado deixado pelo ex-ministro do STF Victor Nunes Leal, referência na defesa do Estado de Direito e da ética pública.

O IAB também esteve presente, em setembro, no XII Ato do Dia Internacional da Democracia, realizado no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Marcar presença em um evento dessa magnitude foi uma forma de reafirmamos o nosso compromisso histórico com a defesa do Estado Democrático de Direito, a pluralidade de ideias e o respeito aos direitos humanos. Outros atos que reuniram lideranças políticas de diferentes partidos, representantes da OAB, da ABI, artistas, intelectuais, juristas e líderes religiosos, também contaram com a participação da Casa de Montezuma.

Afinal, a democracia não se sustenta sozinha; exige atenção constante e atuação coletiva. Seguiremos mobilizados em defesa da liberdade, dos direitos fundamentais e da soberania nacional, celebrando homenagens à democracia brasileira e transformando atos e manifestações institucionais em instrumentos de mobilização em prol da cidadania. Não há crime maior do que atentar contra a democracia.  O que importa, neste momento, é que as instituições do país, de um modo geral, têm demonstrado capacidade de resistência diante dos ataques e estamos sempre buscando atuar de forma conjunta.

 

— Qual é a importância do projeto impulsionado na sua primeira gestão com o objetivo de expandir as representações estaduais do IAB? E o que falta para que o Instituto esteja presente em todo o território nacional?

Foi de vital importância criar representações estaduais, uma vez que o IAB é uma entidade de âmbito nacional. Nesta gestão, estamos consolidando essa política, ampliando as representações regionais, abrindo subsedes em diversos estados e incentivando a realização de eventos locais de relevância para a comunidade jurídica. Tenho percorrido o país com esse propósito e, atualmente, apenas Mato Grosso do Sul ainda não conta com nossa representação. Apesar de ser uma verdadeira maratona de viagens, o esforço tem valido a pena: em cada estado visitado, estamos empossando novos associados, outorgando medalhas de mérito conforme previsto em nosso estatuto e inaugurando novas subsedes.

Ricardo Gouveia é jornalista, escritor e atuou como assessor de Imprensa de instituições do Direito; além de colaborador do Correio do Brasil.

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